O mar batia contra o paredão e vinha lhe respingar delicadamente o rosto, frescor que se seguia a cada estrondo. Olhava a constelação de luzes rebrilhando morro abaixo no outro extremo da paisagem e sempre lhe ocorria a idéia de um morse luminoso enviado aos deuses - se S.O.S. ou declaração de amor, não saberia dizer.
O ar pendia dos postes, denso de maresia, tátil, pegajoso quase, com seu perfume almiscarado e lúbrico. "Ainda não descobriram a cura do casamento..." ele falou para si mesmo de repente e caiu na gargalhada como se tivesse ouvido a frase de outra boca.
Era verdade: quando pensava nela, era casado já, como se ele, numa noite com esta, tivesse aconchegado a moça na sela de seu cavalo e disparado com ela a todo galope, para longe, para sempre.
Riu-se. Mal conhecia a moça e já pensava em
casar. Se contasse, ninguém acreditaria. Mas não
contaria. Porque não havia o que contar. Não
havia história. Havia livros, sorrisos e silêncios,
olhares e palavras quase formais. Só. No entanto, era
assim que os via, na ficção que fazia: cercados
de livros, se comunicando por olhares, sorrisos e silêncios
- economizando palavras como quem escreve.
Divertia-se pensando nela como sua mulher, mãe de seus
filhos, sua viúva - ia pensando a galope enquanto o
mar batia superlativo no paredão do calçadão,
e se desfazia num véu invisível que lhe umedecia
o rosto, perfume marinho de peixes que tivessem virado flores
como no quadro que Escher nunca fez, mas bem poderia...
Divertia-se com a vida que não teria ao lado dela. "O casamento tem cura?", imaginava o título. Ou "Descoberta a cura do casamento" em manchete de primeira página.
A água de coco também tinha um longínquo travo de mar ou era maluquice dele, barato de maresia que lhe batia agora de achar tudo ao mesmo tempo relacionado e longínquo como a teia de luzes que se espraia piscante pelo morro longe?
Longilínea: assim a definiria por fora. E por dentro? Não sabia. Diria vasta, atlântica, como o oceano presumido na escuridão do horizonte. Um relâmpago espocou de repente e as ondas fizeram a voz do trovão. Os pés captavam o tremor que corria feito um arrepio pelo chão. Sentia às vezes um pânico primordial de tudo, um terror primitivo da vida. "Viver é muito perigoso" - lembrou de Guimarães Rosa...
Àquela hora e com esse tempo não havia ninguém no calcadão à beira-mar. Sentia-se um marinheiro solitário na ponte do navio. Casar: ele já não tinha idade pra isso,nem ela ainda.
O mar lhe cuspiu no rosto um pingo mais grosso. Logo iria chover, mas ainda havia tempo de não ter pressa. Pagou o coco e olhou mais uma vez o mar espatifar-se contra o paredão. Persistente, insano, violento, um dia o mar resgataria o espaço que foi seu. Olhou o relógio: a noite era uma criança sem sono...