Do ouviram do Ipiranga eu até
gosto. Gosto desse Brasil que se tira de ouvido, vivo no improviso
do dia-a-dia, sempre no equilíbrio precário
de um samba meio bamba, meio bobo - mas gente boa.
O que me mata são essas margens plácidas, flácidas,
indecisas. Não há povo heróico que resista
viver entre margens tão malandramente elásticas,
complacentes
Sempre que se trata de partidas, nos mostram a outra margem logo ali, do outro lado, quase ao alcance da mão, bastando só um pequeno esforço para alcançá-la. Mas assim que a gente se põe em andamento, as tais margens se dilatam e então é um nunca chegar de água igual e logo o rio é um mar e o mar, um oceano e a confusão se torna tanta que nem sabemos mais se chegamos ou voltamos, que margem nos acolhe em sua passividade medonha, feita de preguiça, indiferença e medo
E o sol da liberdade, que por um instante fulgira no céu da pátria quando tudo eram partidas decididas rumo ao outro lado, o sol da liberdade logo se desfaz num mormacinho sem vergonha de mal sabermos onde estamos, tudo sempre mais ou menos parecido em cada margem, sob essa luz sem sombras que nos oculta o passar das horas e dos anos
E aí engrenam na TV
e nos jornais mais um papinho desses de "amor e esperança"
e à terra desce mais uma vez a paz do futuro, que é
só um sonho intenso, um delírio, de quem se
acostumou a deixar passar os dias deitado em berço
esplêndido.
Eu gosto do som do mar e da luz do céu - profundo,
mas nem sempre límpido - onde o Cruzeiro resplandece,
mudo. Gosto das flores, das frutas, dos seios dessas moças
que em nossos bosques têm mais vida e mais amores
Mas, cá entre nós, os braços fortes têm deixado muito a desejar - sobretudo quando se trata de erguer a clava da justiça. Nessa hora, é sempre a mãe gentil e viciosa que nos oferece em socorro as tetas flácidas para que o gigante retorne ébrio à sua natureza impávida
Se palavra é sina, como dizem uns, certamente é por isso que as mesmas letras que escrevem "ordem e progresso" também escrevem "por medo, regresso" - como se já fosse nosso destino oculto vagar entre as tais margens plácidas, iguais e preguiçosas, nós, incapazes de realizar, como escreveu Mário Faustino, "o nobre pacto entre o cosmos sangrento e a alma pura"
Esse sempre ficar a meio caminho, essa quase-história que se estende inconclusa do passado incerto a um futuro de promessas, é espelho de uma grandeza que lentamente o tempo vai transformando em glória (imaginária) do passado
Chegará o dia da proclamada luta quando enfim poderemos temer a morte - não de susto, bala ou vício - mas ao menos de uma causa justa? Sei lá... Eu preferia que tudo se ajeitasse ao nosso modo, sem custo, sem sangue, entre dois feriados. Mas está cada vez mais na cara que se o brado retumbante quiser mesmo se fazer ouvir vai ter que gritar bem alto, acima das vozes e dos risos e da fumaça dos charutos.