20 de dezembro de 2004
Terapêutica e medicinal

Sexta-feira à tarde. Um cantor de voz dolente leva sucessivos sambas sob um céu de sol ausente, todo cinza, igual e quieto, preguiçoso de chover. Sexta com jeito de domingo. "Abre a janela formosa mulher...". Um econômico cavaquinho acompanha a voz que se espalha natural, sem o recurso doentio da amplificação sonora - a pior invenção do século 20, pior até do que a bomba atômica.

A voz potente, malandra não me invade a casa, não se impõe, mas vai me seduzindo os ouvidos aos poucos até tomar conta da minha atenção: se não fosse o trabalho, já estaria lá embaixo, curioso de conhecer esse Jamelão do Catete que me encanta com seus sambas bem tirados lá do fundo do baú, repertório que denuncia décadas e décadas circulando com sucesso pelas rodas de samba da cidade. "Se um dia, meu coração for consultado...".

No domingo, no domingo de verdade, depois de amanhã, é dia do sanfoneiro que se instala, lá pelo meio da tarde, no outro botequim em frente ao prédio, e junto com uma turma certa de gente amiga, se entrega a interpretações não exatamente improvisadas, porque já exaustivamente repetidas, mas onde sempre se nota o toque do improviso: "Asa branca", "Brasileirinho", o hino do Botafogo, tocado com o fervor cívico da Marselhesa, numa sanfona antiga, eu diria mesmo, antiquada - mas afinadíssima, consigo mesma e com seu dono.

Eu fico daqui de cima ouvindo e mesmo que eu esteja lendo ou fazendo alguma coisa que me exige atenção completa, a música não me atrapalha nem desconcentra, é antes como uma brisa ou algo assim.

"Quem sabe cantar ou tocar um instrumento, nunca está sozinho." , alguém me disse ou eu mesmo pensei, não lembro. Mas tanto faz - é tão óbvio que a música une as pessoas. Vem um puxa uma letra, o outro vai e acompanha no violão, chega um cavaquinho, um pandeiro, alguém levanta pra dançar e quando a gente se dá conta já é festa. E ainda mais esses clássicos, grandes sucessos para todos carregados de lembranças... A gente ouve, sente e vê no olhar do outro que ele também viveu aquilo... Não é preciso contar histórias, nossa inútil versão do passado. Uma intimidade de outro modo incomunicável se faz ali, instantânea, fugaz e exata: "Essa música diz tudo", pensam os dois, o eu e o outro, e ainda que seja ilusão, é verdadeira.

O poeta nos empresta palavras. Cartola, Chico, Gil, Tom, Paulinho da Viola: são os que imediatamente me ocorrem sem que a menor pretensão de ser justo ou definitivo nesta lista me iluda.
Chico... Como conceber a mim, o Brasil, o Mundo sem o Chico? Chico foi uma espécie de professor da minha alma. Da nossa alma. "Quero ficar no teu corpo feito tatuagem...". Essa coisa maluca que é o amor, o desejo, o tesão - ainda mais quando se é jovem e tudo é novo - encontrava em Chico palavras.

Enfim, o que eu quero dizer é que essa gente nos ensina a sentir. Sem o consolo dessas rimas, sem seu impulso, muita mais gente morreria de amor, muito mais gente mataria por amor. Muita mais gente, os verdadeiramente nobres e lúcidos, enlouqueceria de amor. Não, não... Sem Chico e todos esses caras eu seria muito pior: toda literatura é pedagógica, terapêutica e medicinal.