6 de junho de 2005
Minha primeira epifania

Karina Longo, repórter de um guia cultural online de Buenos Aires chamado El Muro (www.elmurocultural.com), resolveu me entrevistar. Logo na primeira pergunta, pede que eu fale sobre a minha infância. O Carlos, que trabalha comigo na Tribuna da Imprensa, reclamou outro dia que eu só tenho falado em envelhecimento, o tempo que passa, essas coisas...

O pior é que é verdade. Mas não é que eu me sinta velho, desatualizado ou algo assim. Eu tenho me sentido, sim, antigo. Não é nem sequer "experiente". Lembro (vejam só, lembro!) de uma entrevista do Pedro Nava há quase trinta anos em que ele dizia que "a experiência são faróis voltados para trás". Quer dizer, a experiência mais cega do que ilumina. Então quando me digo "antigo" é a palavra menos inexata que encontro para definir um sentimento um tanto vago, que não é de nostalgia, mas remete a esse acúmulo de lembranças que carrego e uso de um modo, digamos, comparativo.

Comparo, por exemplo, o que é a vida de uma criança ou de um adolescente hoje e o que foi a minha. E o contraste é absurdo. Essa diferença "pesa" como se o tempo entre elas fosse muito maior do que é de fato. A expressão "século passado" talvez seja o que melhor define essa diferença.
Essencialmente, o grande responsável por esse salto que nos atirou quase de repente em outro século, em outro mundo, foi o computador.

Mas a história que talvez melhor ilustre o que eu quero dizer - essa brutal mudança das coisas ocorrida nos últimos 40 anos - aconteceu quando eu tinha lá meus sete, oito anos. Estava guardando para contá-la num quase-conto ou quase-crônica dedicado só a ela, mas como o texto não sai e a oportunidade pintou, o leitor que não brigue comigo se a história aparecer recontada no futuro.

Enfim, eu tinha uns sete, oito anos e um primo da mesma idade, o Maurício. Nascemos no mesmo dia e fomos criados juntos na vila onde, além da minha avó e da minha tia, mãe do Maurício, moravam ainda mais duas tias, a Margarida e a Ruth. Nossa família ocupava as últimas casas da vila, então o terço final dela era "território nosso".

As casas eram grandes e uma das minhas tias alugava os quartos que sobravam. Um dia, foi morar lá uma moça chamada Ester. A Ester era o que o Roberto Carlos chamava numa música de "garota papo firme". Ela só andava de minissaia - o que na época era um escândalo indescritível aos olhos de hoje. Ainda eram raras as moças que tinham coragem de exibir as pernas daquele jeito, então as reações variavam entre a perplexidade e a violência. Era um choque. E para nós, meninos, um êxtase.

Sabíamos, eu e Maurício, a hora que Ester saía para trabalhar e ficávamos nos últimos degraus da escada, esperando que ela descesse lenta e majestosa no alto daquelas pernas magníficas, atentos os dois ao mais ínfimo indício de uma calcinha. Éramos os mais jovens súditos taquicardíacos de Ester e ela nos distribuía sorrisos e afagos com genuíno carinho: ela não via malícia nos nossos olhos nem nas suas minissaias estonteantes.

Mas a primeira grande epifania da minha vida aconteceu numa manhã ensolarada de terça ou quarta-feira, que era o dia em que minha tia lavava as roupas da família e dos seus inquilinos e as pendurava no varal nos fundos da casa. Não custa imaginar uma brisa leve que ondulasse sensualmente os lençóis imensos luzindo sua brancura sob o sol... Misturadas entre os lençóis, tremulavam as austeras roupas de baixo daquela época, igualmente brancas. Pois bem, de repente, no meio daquele oceano imaculado, eis que salta aos nossos olhos de meninos uma... Calcinha vermelha! A calcinha vermelha de Ester! Mínima e de renda. Claro, só podia ser dela. Quem mais ousaria tanto?

Não sei no Maurício, mas aquilo me bateu como uma iluminação. Intuí, naquele instante, muito mais do que poderia dizer nas poucas linhas que me restam, mas em resumo, diria que intuí que a calcinha vermelha de Ester era semente incendiária da mudança que estava por vir e consumiria com voracidade inédita a monótona brancura daqueles dias. Se foi isso mesmo que o menino intuiu, ele estava certo.