4 de julho de 2005
Dez dias em silêncio

"Não pensar em nada". A idéia é tentadora. E controversa. Essência de toda tradição meditativa oriental, impossibilidade lógica para uma boa parte da filosofia ocidental, "não pensar em nada" é, de um modo ou de outro, um desafio - árduo ou inútil.

Tenho pra mim que a contradição apontada pela filosofia é apenas aparente. O argumento é mais complexo certamente, mas pode ser resumido assim: se sempre estou pensando (ao menos é esta a sensação que temos) logo não é possível "não pensar em nada". Por outro lado, também se pode argumentar que o nada é logicamente irrepresentável, logo impossível de ser pensado.

Mas suponho que resida exatamente aí o equívoco: representamos o nada pelas idéias de escuridão e silêncio. Ou seja, se pudermos construir mentalmente as idéias de escuridão e o silêncio teremos então uma representação do nada. O nada não é um absoluto impensável, mas algo - "potencial" ou "intermediário", digamos assim. É interessante (e embaraçador) que o ato inaugural da filosofia moderna - o "penso logo existo" de Descartes - resulta de uma meditação cujo ponto de partida é exatamente não pensar em nada.

Tudo isto são conjecturas, ruminações de um leitor que, como Borges, gosta de imaginar a Metafísica como um ramo da literatura fantástica. Mas, eis, enfim, o que seria para mim "não pensar em nada": seria colocar na tela da mente a negra imagem da escuridão e do silêncio. Algo que exige, ao menos para um meditador iniciante, um certo ambiente. Silencioso e escuro; calmo e isolado.

É para um lugar assim que eu estou indo a fim de tomar contato com uma técnica de meditação que tem como ponto central "não pensar em nada". Durante dez dias estarei inteiramente desligado do mundo. Sem televisão, sem jornal, sem telefone. Sem internet!

Também não é permitido aos meditadores conversar entre si. Trata-se de uma experiência radical de isolamento e ensimesmamento. Claro, ninguém está de fato sozinho. Há instrutores experimentados que orientam os aprendizes.

Pode parecer estranho, mas não é o silêncio o que me intimida. Uma boa parte do meu dia passo sozinho, em silêncio, trabalhando. O que mais me estranha e assusta é não ler. E escrever. Nada. Porque, na verdade, o que mais faço é ler, principalmente na Internet e no computador - mas não só. Tenho uma apaixonada compulsão por livros e vivo cercado deles. Encerro meu dia lendo para relaxar e dormir!

Conheço algumas pessoas que já passaram por essa meditação e todos são unânimes em dizer que vale a pena, apesar da dificuldade. Sobretudo nos primeiros dias. É algo que pode ser comparado a uma prova de esforço físico, tipo a escalada de uma montanha ou uma maratona. A diferença apenas é que não será o corpo o mais diretamente exigido, mas o espírito. Aliás, um amigo meu que no mês passado conseguiu completar uma prova de triatlon, depois de quase 13 horas de esforço físico ininterrupto, me confessou sua relutância em se aventurar nesse retiro de dez dias.

Eu, da minha parte, me sinto como se estivesse partindo para uma peregrinação. Uma longa caminhada. Um íntimo Caminho de Santiago. Não tenho dúvida que será uma experiência inesquecível. E creio mesmo que decisiva, um primeiro passo importante em direção ao desconhecido. O desconhecido que reside em mim e é exatamente aquele cerne, que muitos acreditam divino, comum a todos os seres vivos. Enfim, espero ter ao menos o vislumbre da vida por detrás da máscara de equívocos que chamo eu. O eu é uma invenção recente. Mais antigo é o cheiro das velas.