8 de agosto de 2005
Tarde sol

Vagabundeava na tarde magnífica pelas ruas de sua infância. Caminhava lento, atento, tranqüilo. Cumprida a agenda mundana de afazeres e obrigações, as horas que lhe restavam decidira entregar ao sol que amaciava o azul tão íntimo de um céu exato, sem nuvens.

Sentiu, como de outras vezes, o ímpeto inesperado de entrar na vila onde sua avó e suas tias moraram há tantos anos que mais parecia uma outra vida. Era sempre com a emoção de um júbilo contido que entrava ali, as imagens do passado e do presente tão vivamente sobrepostas que mais pareciam simultâneas - como se subitamente lhe tivesse sido concedido um domínio inumano sobre o tempo.

Não saberia dizer se de fato lhe doía ver desfigurada a paisagem de sua infância. O progresso operara uma estranha transformação: as casas, antes voltadas para a própria vila, agora estavam toscamente voltadas para a rua que corria nos fundos. Na verdade, as casas já não existiam mais como casas propriamente. Eram lojas agora. Algumas chegaram a ser de fato demolidas para dar lugar a pequenos prédios. Outras foram simplesmente sofrendo adaptações sem maior preocupação estética, tocadas apenas pela necessidade e a sovinice. Então onde antes havia, por exemplo, uma varanda, agora restava uma meia água sustentada por paredes sem janelas e chapiscadas de cimento.

Da casa de sua avó, ainda resistia intacto o segundo andar. O telhado ainda parecia o mesmo, carente de reformas que seu avô nunca se dispusera a fazer e na janela aberta do quarto podia ver nitidamente sua avó sorrindo, daquele jeito meio triste dela, que talvez nem bem tristeza fosse, mas uma espécie de resignada resistência a todo sofrimento, à dura vida que sempre levara, vida de imigrante pobre com muitos filhos numa época quase sem confortos.

Dos grandes oitis, que eram seu refúgio predileto, não sobrara nenhum vestígio. Por toda a infância, abrigado em algum galho mais alto que o tornava invisível aos passantes, sonhara em lhes alcançar o impossível topo, que ultrapassava o teto das casas. Lá, onde reinavam os pássaros, nem os gatos se arriscavam. O menino, arredio e corajoso, se contentava em imaginar-se pássaro, gato, anjo...

Despediu-se da avó, despediu-se das árvores e voltou a flanar na tarde ensolarada pelos espaços desfigurados de sua infância. O mundo era como uma boca que se devorava a si mesma? Não gostava dessa imagem... Mas, precária e provisória, era como melhor se representava o que havia de cruel, insano e indiferente no ritmo incessante do mundo. Permanência e impermanência. Permanência e impermanência. O mundo, a vida, respirava. Seguir sendo era seu único compromisso.