É de nuvem ou é de pedra, esta felicidade que sinto?
Vem do chão ou vem do céu, esta felicidade tão úmida e cinza, essa felicidade solene e calma, que se esquiva das palavras que a querem definir?
Está em mim, tão longe que mal a vejo, no íntimo infinito que se reserva por detrás das pálpebras fechadas.
Está lá e não me pesa: nuvem.
Está lá e parece tão sólida: pedra.
Convive em mim o inconciliável. Na escuridão da alma, preside a lógica dos sonhos.
E quanto mais fundo desço, mais irreal vai parecendo o mundo cotidiano e tributável com suas regras e crenças. Mas quem suportaria a absoluta singularidade das coisas? Quem suportaria viver sob o mistério da única e ambígua verdade: tudo é um?
Minha felicidade de nuvem e pedra, sem quê nem pra quê. Minha felicidade inútil e feliz, suspensa no peito, sem que nada a sustente, desafia a gravidade do mundo.
E essa felicidade talvez seja a única resposta, o único gesto real de rebeldia.
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Importa muito pouco quase tudo que se acredita ter valor.
Visto daqui, de dentro de uma alma feliz, não vale a pena o esforço de "dar certo".
O que é "dar certo"?
É de se rir que tudo se resuma a dinheiro. Tudo. O circo mambembe de Brasília. Os sonhos de consumo. Todas as compensações que o ressentimento pode inventar.
Tudo custa dinheiro.
E o que pedem em troca? A alma, caro leitor. A sua alma. Ninguém quer menos do que a sua alma em troca do dinheiro que lhe paga no fim do mês. Porque eles querem que você não apenas trabalhe, mas acredite no que faz. Sim, que você acredite...
Pois é, olhe bem, olhe agora, com os olhos límpidos de quem ainda enxerga alguma felicidade no fundo da alma: onde é gasta a sua fé?
A fé é o que você faz da sua vontade.
Mas como pode um escravo (aquele que não é dono da própria vontade) ter fé?
Quem compra a sua fé, leitor?
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Não se aflija. Está crônica não é mais uma fatura, dessas que por esta altura do mês entulham nossas caixas de correio.
Estamos todos no mesmo barco. Escrevo para você, mas é de mim que falo. É a mim que cobro, leitor-reflexo.
Nenhum traço de pessimismo, de amargura ou de revolta. Nada. Apenas observo. Não custa nada. E vou diminuindo, diminuindo. Até que de mim reste apenas uma felicidade, de pedra ou nuvem. Nem sei...
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Você quer, leitor, uma metáfora final e consoladora? Feche os olhos e imagine o Maracanã num dia de Fla x Flu. Os dois times estão em campo. Estão lá os cartolas odiosos e as servis equipes de jornalismo. Mas as arquibancadas estão vazias. Não há sequer um único e escasso vendedor de mate. Ninguém. Sem alarde nem aviso, os torcedores simplesmente desistiram de torcer e agora repousam em sua felicidade - de nuvem ou de pedra, não importa.