Como tantos anos podem caber dentro de um ano que, por outro lado, parece ter passado tão depressa? Não mudei, porque ninguém muda. Mas estou mais íntimo de mim. Uma intimidade silenciosa, como a dos amantes que envelhecem juntos. Foi um ano muito rico.
Outro dia, lendo uma das inúmeras entrevistas de Borges que podemos encontrar na Internet, descobri que a célebre máxima de Sócrates "Conhece-te a ti mesmo" foi na verdade uma resposta à apologia que Protágoras lhe fazia das viagens.
Meus amigos dizem que eu não gosto de viajar. Eu desminto a afirmação com veemência. Eu adoro viajar. Acontece que gosto muito mais ainda de ficar em casa. Detesto me sentir um turista. Acho o turista clássico um idiota sem legendas. Um espectro cômico ou incômodo, segundo a ocasião, a vagar por lugares que não lhe pertencem.
Por acaso, ainda há pouco, começando a ler "Presságios do Milênio", de Harold Bloom, me deparei com uma frase de Emerson: "Viajar é o paraíso dos tolos". Claro, isso não se aplica a todos. Conheço grandes viajantes: Sandra, Marcos, Andréia são alguns dos amigos que me ocorrem como exemplos de pessoas a quem essas máximas não se aplicam.
Na verdade, o que quero dizer é que, este ano, viajei muito em mim. Caminhei sem medo pela vasta noite de minha alma, por suas intrincadas ruas desertas, ouvindo ressoar meus passos e atento aos prédios que em mim se erguem, modestos ou monumentais.
Fui minha cidade este ano. Fui, finalmente, a cidade que habito há tantos anos, desde antes de mim. E não sem surpresa me encontrei em sua complexa geometria carregada de significados; em sua geografia díspar, cheia de altos e baixos; e em suas muitas fisionomias que são sempre eu e aqueles que elegi ser, às vezes mesmo sem que soubesse.
Privilegiei minha noite, ainda que tenha assistido a inúmeros amanheceres. Só não quis meus dias, as horas em que menos sou genuinamente. Quis a mim vazio para melhor me ver.
E do muito que vi, quase nada tenho a contar. A cidade que sou pouco difere de outras tantas que lhe são vizinhas, à parte o fato de ser eu. De certo e bom é ter perdido o medo de percorrê-la - porque nada mais espero encontrar, e nada mais temo perder: porque sou pouco. Mas, do alto de mim se descortina uma vasta paisagem em que quase qualquer um pode se ver: porque sou muitos.