30 de janeiro de 2006
De letras e formigas

Estava deitado de olhos fechados, o corpo líquido, esparramado sobre a cama, se deixando afagar pela sutilíssima brisa da tarde quente. A mente devaneava, incerta, feliz. Ele sentia que um sorriso de satisfação genuína se desenhara em seu rosto e o mantinha ancorado no agora sensível do outro corpo próximo.

Não saberia dizer a que distância exatamente ela estava ou em que posição. Apenas sentia que seus pelos se eriçavam para captar uma espécie de calor que ela exalava e os mantinha como que imantados. Era como se estivessem unidos poro a poro, por finíssimas linhas de minúsculas formigas laboriosas que corressem de um lado para o outro, incessantes.

Imaginava que as formiguinhas laboriosas eram também letras, sinais de um código secreto e telepático, e os dois, assim deitados lado a lado, um livro aberto folheado pelo acaso da brisa. Não um romance, mas um livro de poemas. Cada página um poema, lírico ou erótico. Cada página um poema, de solidão ou de êxtase. Cada página um poema, ele e ela. Tão próximos, tão distintos.

Gostou de acreditar que acabara de alcançar uma imagem precisa do amor: que os dois eram páginas espelhadas de um livro. Sabia que quando abrisse os olhos a imagem talvez se desfizesse no ar e dela nada restasse. Não porque fosse uma imagem inverossímil, como as de certos sonhos impossíveis de lembrar de tão absurdos, mas por estar contente demais para tentar guardar qualquer coisa. Sentiu que seu sorriso se alargara ainda mais, um longo arco sulcando seu rosto e fazendo seus olhos se apertarem: a hipótese do esquecimento não o incomodava agora. Nada o incomodava agora. Agora: como gostava dessa palavra que se estendia agora como o sorriso em seu rosto.

Ouviu ao longe, pairando sobre o burburinho da rua lá embaixo, o que lhe pareceu o apito de um navio entrando na baía. Mesmo quando chegavam, o apitar dos navios sempre lhe soava como uma despedida. De novo. Era comovente. Os navios foram feitos para partir e não para chegar. Os navios estão sempre partindo, mesmo quando chegam. Longo e grave, o apito soou mais uma vez, tão nítido como seu coração batendo.

Na entrada da baía havia uma pedra imensa e imponente em que se podiam ver muitas formas. Ele imaginava agora que era ela que a natureza esculpira na pedra, assim deitada ao seu lado, apoiada em um cotovelo, velando em silêncio o seu falso sono. Deixou-se ficar no silêncio como se sombra fosse. Ela o porto, ele o navio. Duas páginas de um livro. Dois poemas. Dois. Tão uns...

Virou-se para vê-la como a imaginara, mas ao abrir os olhos ela também dormia ao seu lado estendida.