"Sim, às vezes, me acontece... Começo por perder o sono. Nem razão para isso existe. Apenas fico lendo, as horas passam e então, quando me dou conta, o frio e pesado silêncio dessas noites de inverno chuvoso me envolve como o presságio do mal, inevitável e iminente.
O animal que há em mim se põe alerta, bruto demais até para sentir medo. Perscruto o minucioso silêncio; ele é escuro, pesado, denso, feito do que de pior pode haver na noite. E ainda que haja luz na casa, ela é inútil.
Tudo mais é inútil diante desse silêncio que se alastra. E o animal espera, ciente apenas do silêncio, imune às palavras e a todo sentimento. O silêncio se alastra; o animal se alastra, lentas manchas que se espalham até se confundirem: animal-silêncio, treva dentro da treva. E eu... Eu? Não sei se cesso ou se sou, genuíno nada vivo.
Sim, às vezes me acontece de ser capturado pelo silêncio hostil dessas madrugadas que estão em mim mais do que no mundo. Sou então o negro espelho de tudo que se oculta. Um cansaço me impregna como um cheiro ruim: é feito estar grávido do que se tem de pior e ter de carregar-se como o feto morto de si mesmo. Um cansaço. Sim, um cansaço sem o consolo do sono. Um cansaço de tudo que é humano e meu. Pois, o que de humano pode ser assim tão puro como esse não que pesa e pulsa, central e obscuro? Não, não será de certo humano, o que seria pouco. Vem de antes, animal-silêncio-não, ser mundano e sem origem, desde sempre aí: resíduo, mácula, mancha que às vezes se alastra sem motivo. Verte, simplesmente.
Sim, às vezes acontece e o que me sai depois é esta prosa tão confusa e incerta como uma insônia repentina. E nada que escreva pode dar conta do que sinto naquele momento, monumental em sua falta de sentido e de grandeza. Mas, se nessas horas me humanizo, confesso, sinto medo. Porque, na verdade, o que sinto é o mal muito de perto. O mal. Haverá? Onde? Por quê?
Não me siga o leitor por este abismo. Eu mesmo não me sigo. Eu? Nem mesmo. Apenas, sinto. Atento, ouço e deixo que o cansaço se humanize e me adormeça. E se depois ainda tento que isso se converta em texto é já a vaidade de querer o impossível."