Nem 50 anos fiz ainda, mas alguns já me tomam por um cadáver com mais de 70 anos de morto. Ao menos foi assim que me senti ao descobrir que andaram usando textos meus sem autorização: um defunto atirado na vala comum do domínio público.
Cheguei mesmo a pensar: será que já estarei morto? Dizem que certos espíritos mais distraídos demoram um pouco para perceber que desencarnaram. Distraído eu sou. E, afinal, o que seriam 70 anos para um morto? “Quase uma vida!”, respondi-me irônico. É, não devo estar morto. Tudo leva a crer que não.
Por outro lado, avaliando meus escritos, concluo que, se vivo, às vezes pareço anacrônico, morto há 70 anos pareceria moderníssimo! O que não deixaria de ser uma vantagem. Mas como usufruí-la morto?
Vá lá, poderia ser simplesmente uma homenagem, me sussurrei condescendente. Mas sem avisar?, resmunguei de volta. Nem um e-mail, um telefonema, nada. Como só os mortos são homenageados sem aviso, mais uma razão tive para acreditar que me tomam por defunto.
Ou por tolo. Pois, é verdade, reconheço que até me senti lisonjeado – ainda que, ao me atribuírem o crédito, tenham escrito Antonio com acento circunflexo, o que me deixa com um ar muito circunspecto e nada carioca: não fico bem de chapéu.
Será, enfim, por viver repetindo que escrevo para mortos e não-nascidos, acabaram me tomando por alguma entidade imaterial e fora do tempo?
Bom, é do conhecimento de todos que escritores, especialmente brasileiros e cronistas, vivem de brisa, sombra e água fresca. Beneficiados por isenções fiscais de todo tipo, descontos e promoções variadas, não pagamos contas de nenhuma espécie.
Como estamos num plano espiritual mais elevado, também não comemos e quando nos acontece de querer dormir, o que é raro, simplesmente nos desmaterializamos: não precisamos de casa, portanto.
Logo é natural que jamais pensemos em ser pagos pelo que escrevemos. Quando isso nos ocorre, procuramos outra atividade: nos tornamos tradutores, copy desks, ghost-writers, letristas, apresentadores de tv, jornalistas, prostitutas, roteiristas, sociólogos, funcionários públicos, psicólogos, médicos, charlatães ou qualquer outra atividade remunerada correlata ao trabalho de escritor (se o leitor estranhou a correlação, basta consultar a lista de autores mais vendidos).
É, certamente o que aconteceu foi isso: não quiseram perturbar a minha paz, nem tampouco me expor a tentações mundanas. Só me resta então agradecer e me desmaterializar.