“Eu nunca fiz um gol, sabia? Acho que eu sou o único brasileiro que nunca fez um gol. Há muito tempo, eu quase fiz um, sim. Foi logo na primeira vez que eu joguei num campo grande, de terra batida. Jogo de campeonato, onze pra cada lado, de camisa e tudo, o sonho de todo moleque.
Eu entrei no meio da partida e logo no primeiro lance recebi a bola no meio-campo, quase na ponta esquerda. Até hoje me lembro da sensação de desamparo que senti com aquela bola nos pés, meus olhos percorrendo rápida e minuciosamente todo o campo, imenso como a solidão que eu sentia sem saber o que fazer com a bola. Os gritos repercutiam cada vez mais longínquos em meus ouvidos, meu coração se contraindo, contraindo e junto com ele o tempo até que só restava uma urgência prestes a implodir o mundo.
Era preciso fazer alguma coisa! Então eu chutei. Chutei do meio-campo em direção ao gol e senti que naquele exato instante o silêncio e a imobilidade baixaram sobre o campo e todos os olhos se grudaram na bola em sua trajetória caprichosa. Ela subiu e foi descrevendo uma curva lenta em direção ao gol – tudo tão lento como se durasse até hoje – descendo, descendo até bater no ângulo onde a trave e o travessão se encontram, rompendo num estrondo o fantasmagórico transe que congelara a todos. Seguiu-se um “uh!” que misturava o alívio de uns e o descontentamento de outros e imediatamente reparei que o técnico do meu time gesticulava com raiva para que eu, que mal acabara de entrar, saísse de campo enquanto alguns companheiros já iam me empurrando para fora.
Levei uns segundos que até hoje me doem para entender o que acontecera: eu quase fizera um belíssimo gol… Contra! Isso mesmo, eu chutei a bola na direção errada do campo! Nunca mais me deixaram jogar e eu acabei virando goleiro.
Até que outro dia, me vi contando cheio de detalhes um gol que acabara de fazer. Eu cortara um passe do time adversário na esquerda, na altura do meio-campo. Driblei o lateral que veio na cobertura, passei a bola para um companheiro e continuei correndo, fechando em diagonal; quase não acreditei quando gritei “Dá!” e recebi de volta no meio de dois zagueiros; protegi a bola, ganhei dos dois na corrida e chutei de canhota, na saída do goleiro. Um golaço! Golaço! Eu gritava e pulava como se tivesse feito o gol mais bonito da história, no último minuto de uma final de Copa.
Sinto o sangue ferver dentro de mim e me dá uma vontade de chorar de alegria só de contar como eu contava “Foi meu primeiro gol!” e então de repente me veio a dúvida se eu tinha mesmo feito aquele gol ou se tudo não passara de um sonho. Enquanto ponderava, me dei conta de que, se o gol fosse um sonho, o mais certo seria que também naquele instante eu estivesse sonhando. Sim, era isso! Tudo não passava de um sonho dentro de um sonho e a dor que senti foi tão forte que acordei no meio da noite fria com uma tristeza tão fundamente enraizada no coração que nem chorar eu chorava.
Sim, eu sonhara aquele gol tão bonito. Eu não fizera, nem faria gol nenhum porque nem futebol eu jogo mais. Eu ainda era e continuaria sendo o único brasileiro que nunca fez um gol na vida. Porque você, claro, você já fez gol, não fez? Claro, todo mundo já fez…”
Poéticas recordações