A cidade perplexa

À noite, a calma se abatera sobre a cidade perplexa. Uma calma exausta, pesada como as roupas encharcadas no varal. Fora um dia duro para a cidade: ruas alagadas, vias interditadas, casas destruídas, gente desabrigada e morta. Resultado de uma chuva sem trégua, constante e igual, inesgotável como o dilúvio. “E se não parasse mais?”, o coração se aperta só de pensar e os olhos calculistas logo avaliam a dispensa: “Comida para cinco dias, no máximo”.

Da janela, não se avistava ninguém. O dia cedo se tornara um feriado decretado de repente: ruas vazias de gente e carros enquanto a TV e as rádios anunciavam engarrafamentos por toda parte, desabamentos, enchentes. Era bom estar em casa.

Sentiu uma imensa compaixão pela cidade, por cada cidadão confinado em seu destino incerto. O próprio ar parecia contrair-se pelas perdas que se davam simultâneas e sucessivas em todos os recantos da cidade: a resignação dos carros avançando lentamente; a dor do pai atônito com a morte do filho tragado por um bueiro; os bens de uma vida arrastados pelas águas barrentas e mal-cheirosas.

Sentiu compaixão por sua cidade, tão frágil ela se mostrava às vezes. A vida era dura para todos na cidade – e muito mais para uns do que para outros, certamente. Mas, ao fim, todos concordariam que, apesar de dura, a vida era boa na cidade, com seus confortos e ilusões. E então, vem um dia como este, súbito, voraz, cruel. E, ao mesmo tempo, tão natural, tão necessário, tão belo. Como chorar a chuva, como maldizê-la?

Era bom estar em casa agora e nem lhe passou pela cabeça rezar, que seria o que, em outras épocas, os homens sensatos fariam numa hora dessas. Deus se tornara uma idéia tão fraca que poucos acreditavam que juntos pudessem mesmo mudar os ventos. “Empobrecemos?” Pensava que sim, às vezes. Outras, se achava rigoroso demais com o presente: o mundo por acaso já fora melhor? Não, nunca. No entanto, havia lá fora quem o quisesse destruir. Para colocar o que no lugar? A lista de bufões que se apresentavam como arautos do futuro nem era grande. Surpresa era que ainda houvesse quem acreditasse em suas promessas gastas.

A cidade perplexa descansava, enfim. Amanhã, a chuva continuaria, vaticinava a meteorologia. Encolhidos em seus cantos, os homens aguardavam. Era bom, muito bom, estar em casa.

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