Imagine, leitor, que estamos juntos, finalmente juntos. Porque é próprio de quem escreve desejar conhecer quem o lê e é próprio de quem lê desejar conhecer quem escreve o que lhe agrada. Estamos sentados os dois num terraço aconchegado na sombra de árvores altas e de onde se avista o mar muito azul no dia ensolarado e sem nuvens. A brisa nos afaga e cada um saboreia com lento apuro a bebida de sua eleição. Quase não nos falamos porque o nosso elo de intimidade foi forjado no silêncio. Partilhamos um sentimento do mundo e queremos apenas estar juntos, mais nada.
O que sabemos e acreditamos pode se resumir numa frase: “Não há nada por trás das coisas.” Com horror que não dispensa a ironia, rejeitamos todas essas filosofias que nos acenam com o conhecimento do que está “por detrás das coisas”, “a verdadeira realidade” inacessível aos olhos, mas “visível” à imaginação orientada por palavras “luminosas”. Rimos dessa tolice, mas sabemos que ela é a origem de todas as tiranias.
Falta vigor e sensualidade a essa descrença do mundo. Amargura, rancor e desprezo escorrem dessas vozes que incitam à destruição e à morte. Onde eles vêem um judeu, um burguês, um negro, um nada nós vemos um homem – e apenas um. E, se olhamos mais longamente para ele, logo começamos a enxergar um semelhante. Porque nós sabemos e acreditamos que, se não há nada por detrás das coisas, há muito dentro delas. Sabemos e acreditamos que cada coisa é um portal que se abre ao infinito.
Por isso estamos aqui, irmanados no silêncio e mergulhados na realidade, atentos a tudo, à espera de nada.
O mundo nos parece imenso e variado, mas naturalmente ordenado, segundo um critério simples de economia de forças. Não precisamos de nenhuma causa para explicá-lo. “O semelhante atrai o semelhante”, resume com perfeição a homeopatia. A ordem que existe não asfixia a beleza. Ao contrário, lhe serve de moldura.
Ah, deixe-me ler para você um trecho do livro que tenho aqui e que ilustra bem o que quero dizer com isso: “Em African Genesis, Robert Ardrey conta que estava com o antropólogo L.B.S. Leakey observando uma flor de coloração coral semelhante ao lilás, quando Leakey tocou o ramo e a flor se desfez, transformando-se em um enxame de minúsculos insetos. Passados alguns minutos, os insetos se reagruparam no ramo, uns em cima dos outros e novamente se transformaram numa flor que não existe na natureza. Alguns eram verdes; alguns, metade verdes, metade róseos; outros eram de um coral escuro”.
Vê? Há a beleza singular de cada inseto e há a beleza especial da flor que eles criam ao se ordenar de uma forma muito exata. Como naquelas coreografias onde cada um carrega um painel colorido e juntos vão formando desenhos variados só visíveis à distância. A beleza singular busca formas mais complexas de beleza só alcançáveis quando outros seres singulares entram em jogo. O que os atrai e convence? A economia que a forma mais complexa proporciona. Os insetinhos simulando uma flor talvez iludam seus predadores e assim alcancem aquilo que todo ser finito procura: durar.
Ordem, beleza, economia. Singularidade, complexidade. Pensemos nisso, mas pensemos com o corpo todo nesta manhã de maio tão cálida. Temos tempo e o mundo não nos é hostil. Ah, sim! O livro… É “O Oculto”, de Colin Wilson.
Excelente texto… Concordo plenamente que um pensamento mais humanista é urgentemente necessário! Ultimamente parece ser mais fácil mostrar um demônio atrás de um humano do que um igual…
Antonio, meu amigo, que saudade de você! Você sumiu, ou eu? Seremos então, cúmplices? Hahaha. Suas crônicas continuam fabulosas, como já era de se esperar, pelo fato de sempre me encantarem de uma forma indescritível!E, por mais uma vez, digo que estou com saudade. Como pode ver, voltei com meu Blogspot. Dê uma passada por lá!Um beijo,Laís C