O Pai Nosso

Quando eu era menino, rezava. Nascido numa família católica e educado em colégio de padres era natural que desde muito cedo eu rezasse com um fervor mecânico e supersticioso: não compreendia muito bem as palavras que repetia e minha fé tinha algo de mágico. Pedia tudo, de perdão a tênis novos: Deus e Papai Noel se confundiam e a dificuldade de ser bom exigia compensações.

Os anjos me encantavam e saber que havia um encarregado de cuidar exclusivamente de mim me tornava mais ousado e confiante quando, por exemplo, me equilibrava no alto das árvores e no parapeito dos telhados. Também era reconfortante ter alguém para conversar na cama à noite, quando meu anjo virava travesseiro. E assim, fui me tornando íntimo do invisível que é onde se nutre a curiosidade mais duradoura.

Cresci, deixei de rezar, mas por mais que fizesse nunca deixei de crer e buscar, mesmo sem saber que ainda o fazia. Então um dia, num momento muito especial da minha vida, voltei a rezar.

Anos depois, aprendi uma técnica de meditação chamada Vipassana. De tanto praticá-la, passei a rezar enquanto meditava. Foi quando descobri algo que me surpreendeu: há uma correlação muito exata entre o Vipassana e o Pai Nosso.

O Vipassana é um legado de Buda e pode ser descrito resumidamente como uma técnica de meditação em que o meditador vai movendo sua atenção do alto da cabeça até a ponta dos pés, num movimento contínuo e velocidade variada, com a única intenção de sentir o mais profundamente possível cada parte do corpo.

O Pai Nosso é um legado de Jesus, uma síntese de seus ensinamentos, e de tanto rezá-lo enquanto meditava me dei conta que ele também descreve um percurso sobre o corpo!

Vejam só: “Pai nosso que estais no céu (cabeça, olhos); santificado seja o Vosso Nome (boca, nariz, garganta); venha a nós o Vosso Reino (coração, peito, braços); e seja feita a Vossa Vontade (plexo solar); assim na Terra (ventre, pernas) …”.

Nesse momento, a oração retorna à cabeça e repete o percurso: “… como no Céu (cabeça); o pão nosso de cada dia nos dai hoje (boca); perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido (coração); não nos deixei cair em tentação (plexo) e livrai-nos do Mal (ventre)”.

Há muito a investigar sobre as relações conceituais entre as palavras-chaves das cinco instâncias da oração em suas duas partes: (céu/ céu), (nome/ pão), (reino/ perdão), (vontade/ tentação), (terra/ mal).

As cinco etapas percorridas no Pai Nosso (cabeça, boca, coração, plexo e ventre) também podem ser associadas às cinco principais glândulas endócrinas (hipófise, tiróide, timo, pâncreas e testículos ou ovários) e às cinco regiões da coluna (crânio, cervical, toráxica, lombar e pélvica).

Essas relações fisiológicas são interessantes porque reforçam um aspecto da meditação e da oração muito importante e funcional: elas seriam também processos de autocura.

Há também os dois eixos de reciprocidade que a oração propõe: um vertical (“assim na terra como no céu”) e outro horizontal (“perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”), formando uma cruz.

Enfim, há muito a explorar. Minha intenção ao expor essas reflexões ainda vagas e inconclusivas é motivar os leitores a buscar a meditação e a oração, percebendo o quanto os ensinamentos de Buda e Jesus se aproximam em sua essência e prática, a despeito de todas as críticas e divergências que possamos ter em relação às religiões formais e suas instituições. Rezar e meditar são o caminho mais direto para perceber a unidade de corpo e alma. E essa experiência é a única que importa.

8 Comentários

  1. “Em si ela não é má, é apenas egoísta. O mal é uma instãncia abaixo, seria a completa e consciente perversão da vontade, é a deliberada – e não mais a tentação, o desvio – opção pelo erro”.- Então, o “mas” é mesmo o conectivo adequado.Agora, com estas explicações,suas ( da Sa) fez sentido a presença da adversativa nesssa oração.E olha q o ‘mas'(but…) está em todas as línguas, pesquisei.O final do Pai Nosso deixou de me ser complicado.

  2. Gostei disso, Sa, o corpo como uma via sacra, mas não da dor e sofrimento, mas da revelação. Bacana…Quanto a essa articulação entre tentação e mal, também não vejo assim. a tentação estaria ligada à vontade, a vontade q se corrompe. Em si ela não é má, é apenas egoísta. O mal é uma instãncia abaixo, seria a completa e consciente perversão da vontade, é a deliberada – e não mais a tentação, o desvio – opção pelo erro.

  3. Bom… no meu Pai Nosso, não existe o “mas” e tampouco o “e”.Só uma vírgula. Mas, para quem usa o “mas”, acho que é meio que assim:para que eu não caia em tentação, é preciso que VOCÊ, meu Deus, me livre do mal.É isso.Desculpa minha intromissão.Abraço.

  4. Nunca pensei no Pai Nosso do jeito que você descreveu. Quando rezo é como se fosse o ar tentando chegar a Ele pelas minhas palavras. Nessa hora não lembro que tenho um corpo. Foi muito interessante rezar passando em pensamento por mim. Uma via sacra pelo corpo.” enfim, tudo que depois tentarão nos roubar.”Tem razão. Apenas tentarão.Adorei!Abraço.

  5. Oi, Rose, Deborah e Anna!Bom, eu rezo “E livrai-nos do Mal’. Na verdade, Rose, não sei de onde vc tirou esse “mas”. E se é assim mesmo, ainda bem q rezo errado, pq concordo co mvc, não faz sentido.Deborah queridíssima, acredite em “autocura”. Eu por hora só tenho a experiência da autocura da dor muscular e de algum nervo, mas creio que quando mais profunda e atenta for a meditação/oração, mais poderosa. Quanto ao livro, eu já li: é lindo. Gosto muito da figura do Bashô, a delicadeza do haicai… Saudades de vc.E, Anna, adorei seus biscoitinhos de letras. Também tenho uma “filha” chamada Sofia – sou pai entre aspas. Acho ótim ovc a ter ensinado a rezar… Alimenta a imaginação, a curiosidade, esse sentido do invisível – enfim, tudo que depois tentarão nos roubar.Beijossss

  6. Hoje trouxe café e biscoitinhos de letras!…”fui me tornando íntimo do invisível que é onde se nutre a curiosidade mais duradoura.”Antônio vc realmente consegue trancrever meus sentimentos com suas palavras.Cara, sou fã de Jesus à bessa!Acho que tem tudo a ver o que você escreveu, sempre que estou meditando me vem Jesus e Seu Pai Nosso na mente, sou reikiana e sempre antes de aplicar ou receber Reiki respiro fundo e coloco meus pensamentos em Jesus e tudo flui.Pensei na minha filha enquanto li a sua crônica,ensinei ela a rezar a pouco tempo e muito embora ela não saiba exatamente o que aquelas palavras mágicas querem dizer (ela tem 4 anos) Sofia passou a se sentir mais segura à noite e passou a dormir melhor, é engraçado como o invisível pode nos dar conforto e segurança não é?Ótima semana pra você!

  7. Você sempre me surpreende, Antonio.Gosto da idéia de autocura e o seu “remédio” é muito poético.Aproveito para te falar de um livro que você gostaria e ler.Chama-se “Vida” — e são 4 biografias feitas pelo Paulo Leminki: Trotsky, Basho, Cruz e Souza e… Jesus. É linda a interpretação dele porque lê as parábolas com coração de poeta, como você.Beijos,Déborah

  8. Oi Antonio, olha este link. Orações em latim faladas………Sobre o Pai nosso.Não entendo p que há o ‘mas’.”Não nos deixei cair em tentação, MAS livrai-nos do mal..”Não entendo por que a conjunção adversativa. Não há oposiçao entre ‘tentação ‘ e ‘mal’.O certo seria “não nos deixei cair em tentação E livrai-nos do mal'( *adição)Ou “portanto livrai-nos do mal’.(* conclusão)Legal esta crônica. Intertextualidade : Jesus e Buda.linkhttp://www.voltaparacasa.com.br/musicas/pater_noster.mp3

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