Das artes da chuva

Não podia estar vestido de modo mais inadequado: calça clara, camiseta branca, tênis de corrida. Também não podia dizer que a chuva o surpreendera. Há dias que o céu permanecia pesado de nuvens, ameaçador e volúvel. A qualquer momento e por razões incertas, desatava, ora brutal, ora quase um afago.

Simplesmente se vestira errado, distraído sabe-se lá por que pensamentos, e não precisou andar muito para percebê-lo. Começara a chuviscar, mas por preguiça decidiu seguir assim mesmo até o metrô. Quando chegou à estação, já chovia forte. Despreocupou-se. Saltaria no Centro e não precisaria caminhar muito para chegar onde queria. Haveria marquises e guarda-chuvas de sobra.

Há duas artes essenciais na existência: a arte de andar de guarda-chuva e a arte de andar sem guarda-chuva entre guarda-chuvas. São dois modos de fazer a mesma coisa – andar na chuva. No entanto, o ritmo, a atenção, o passo que cada arte exige mais do que distintos, são inversos.

Os céticos costumam duvidar da eficácia com que essas artes extremas se combinam e se completam na tarde banal para formar uma coreografia de improvisos coordenada por ninguém. Mas assim é quase sempre – e um ou outro incidente é como a nota cômica dessa dança.

Há que se dominar as duas artes porque, com vendedores de guarda-chuva a cinco reais brotando de repente do chão é fácil escolher que arte vestir. Naquela tarde, a roupa inadequada não combinava com guarda-chuva. Mas os tênis combinavam com correr. Espreitou o sinal fechar e saiu em disparada. Do outro lado pode comemorar que se molhara bem menos do que imaginara.

A tarde passou e a chuva voltou a ser uma seca ameaça, pesada e cinza. Tinha ainda compras a fazer. Havia tempo. Sempre há tempo. Quando finalmente chegou ao metrô já chuviscava. Só não esperava o temporal na estação de casa. Chovia tão forte que água descia pelos degraus da escadaria.

Há ainda uma terceira arte, síntese quase esotérica das outras duas: a arte de andar na chuva.

A arte de andar na chuva é uma festa para os sentidos. O gosto da chuva, o cheiro mineral que o concreto exala, o efervescer do chão, o espetáculo exuberante da água correndo, o corpo inteiro a flor da pele, desperto, alegremente alerta.

Arte praticada por poucos e geralmente quando estão próximos de casa, não temem gripes, resfriados e outras constipações, trazem no coração uma sede às vezes inexplicável e sentem-se um pouco loucos, embriagados da nobilíssima solidão de andar lentamente sob a chuva pelas largas calçadas vazias, indiferente às poças de água. Lentamente, cada vez mais devagar, enquanto pensava se valeria a pena passar de sua rua distraidamente apenas para alongar o passeio…

2 Comentários

  1. Isso me faz lembrar a música do Jorge Ben (?) “E a gente no meio da chuva, no meio da rua, a girar, que maravilha!…” (Mais ou menos isso, né?)

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