O texto de Nietzsche está carregado de negação e ressentimento – e que o próprio Nietzsche não se dê conta disso é prova de sua honestidade, mais do que de sua demência. Nietzsche restitui a filosofia da honestidade perdida desde Kant. Em Nietzsche é muito claro que quem filosofa é Nietzsche e apenas Nietzsche e não um Espírito ou a Verdade Inacessível ou alguma entidade abstrata somente vísivel sob as lentes de uma dada filosofia. Mesmo demente, Nietzsche é mais lúcido que todos os seus antecessores. Uma lucidez que o ultrapassa e o denuncia – que pode ser até involuntária muitas vezes, ou mero delírio de vaidade – mas está lá e diz: “Aqui é um homem quem filosofa contra todos os outros homens que o antecederam”.
Essa referência ao passado, a tudo que o antecede ou lhe é contemporâneo, é a perdição de Nietzsche. É onde ancora todo seu ressentimento e exerce toda sua negação. Nesse sentido, Nietzsche não é nietzscheano, não consegue produzir uma filosofia genuinamente nova, desvinculada de todo o passado. Uma filosofia que não fosse mera verborragia acadêmica, mas uma prática de autoconhecimento – conforme o esboçado na máxima: “Todo pensamento é sintoma”. Uma filosofia do corpo, com o corpo – eu ouso dizer: uma ioga, uma meditação.
E uso o termo “meditação” aqui também como uma referência a Descartes que pretendo explorar em outra ocasião. Sim: Descartes, Nietzsche. Para as mentes acadêmicas, para os epígonos do nitzschismo, o binômio soará como “Paris, Texas” – ou algo assim, mais do que estranho: um contrassenso. É bom que seja assim…
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“Todo pensamento é sintoma”. É certo quea máxima não é assim tão abrangente. Nietzsche refere-se apenas as “juízos morais”. Mas, sejamos nitzscheanos: que juízo não é moral? E que pensamento não é juízo – nem que seja sob a forma da adesão a uma “verdade consagrada”? Enfim, pretendo apenas ressaltar que a generalização aqui não é absurda ou descabida.
“Sintoma de quê?” se pergunta aquele que pensa em face de seus pensamentos. E isso, nesse caso, é o mesmo que perguntar: “Quem sou eu?” – eterna pergunta que Nietzsche recoloca numa linguagem nova.
(E aqui os meditadores que praticam Vipassana – ao menos aqueles que seguem a interpretação de S.N. Goenka, pois de outros eu não poderia falar – irão reconhecer uma semelhança com a permanente remetência às sensações do corpo; com a idéia de que todo pensamento produz uma sensação física)
Ao aproximar pensamento e sintoma Nietzsche restabelece a relação de simetria entre corpo e mente que fora rompida por Kant, que opunha explicitamente entendimento e sensibilidade. E o faz de um modo novo, radical, “problemático”: sob o ponto de vista da “doença”.
Explorando as fronteiras dessa sugestão de Nietzsche – e novamente remetendo a meditação Vipassana – é interessante que Nietzsche fale em “sintoma” e não simplesmente em “sensação”. Por outro lado, se todo pensamento é sintoma, um corpo sem sintomas seria um corpo sem pensamento? – ou dito de um modo mais ameno e menos ambíguo: haveria então um “pensamento saudável”, que não deixaria traços somáticos no corpo?
Até onde me lembro, toda “idealização da vida” que Nietzsche faz envereda por aí – eu diria: se perde por aí, porque de novo o ressentimento vem contaminar seu pensamento e tudo que ele produz são idéias de dominação do outro.
O sadomasoquismo em Nietzsche: “Vai às mulheres? Não esquece o chicote”. Mas quem irá segurar o chicote? Tenho minhas dúvidas que será Nietzsche…