Aparentemente, em Jung existe uma correlação dinâmica entre corpo e alma. O corpo não é uma entidade passiva, mero veículo de somatizações, mas o lugar de interesecção entre o passado imemorial, povoado de arquétipos e fantasmas ancestrais, o inconsciente coletivo, e um projeto de superação, uma meta atávica de equilíbrio psíquico, figurado no self. O corpo é o lugar da contínua atualização da síntese dinâmica e precária dessas forças, agindo ele próprio sobre elas como fator singularizante – seja como depósito de heranças e expectativas familiares, representante do espírito de sua época e, acima de tudo, como alguém, com seus quase insondáveis humores, percepções, fantasias, desejos e intuições personalíssimos.
Minhas primeiras leituras me induzem a pensar que para Jung haveria uma “contrapartida representacional” da dimensão biológica expressa em símbolos complexos que emergem em busca de uma “simplificação” pela linguagem. A linguagem seria o modo como esses conteúdos arquetípicos, míticos se incorporrariam ao “consciente coletivo” que, imagino, deve igualmente existir e pode muito bem ser isso que chamamos de cultura, ciência, arte.
De certo modo, o símbolo é a eternidade e a linguagem o tempo – de modo a permitir dizer, parafraseando Platão, que a linguagem é a imagem móvel do símbolo.
* * *
Detesto essa imagem do ego como uma “ilha de racionalidade” que emerge de um “mar de irracionalidade” para definir a relação entre consciente e inconsciente.
Em primeiro lugar, porque essa imagem é absurda, ilógica: da irracionalidade só pode emergir irracionalidade, segundo o princípio de que do menos não é possível extrair o mais. É perfeitamente possível imaginar que a racionalidade degenere em irracionalidade – e exemplos não nos faltariam. Mas o contrário é uma tolice.
Atribuo o sucesso dessa imagem a uma “coincidência feliz” : por absurda que pareça, ela representa com perfeição o sentimento do neurótico em relação a si mesmo. O neurótico sente-se exatamente como uma ilha frágil de razão cercada por insanidade por todos os lados. Um modelo terapêutico que se construa segundo essa “visão” parece, no mínimo, reconfortante: há alguém no mundo que nos compreende!
Em segundo lugar, por tudo que já li até agora de e sobre Jung, me parece que chamar de inconsciente essa vasta – ou quase inapreensível região – que nossa consciência permite vislumbrar é como uma última deferência a Freud.
Mais preciso seria chamá-la de supraconsciência – cuja expressão seria essencialmente simbólica, enquanto a consciência se exprimiria por palavras.
Será, portanto, necessário, mais adiante, aprofindar as relações e diferenças entre palavra e símbolo. O que não me faltará certamente serão fontes. Mas gosto da imagem que produzi acima relacionando símbolo à eternidade, simultaneidade, e palavra a tempo, sucessão.
* * *
Sobre as funções psíquicas definidas por Jung, dois aspectos me chamaram a atenção.
Em primeiro lugar, a analogia possível entre as quatro funções psíquicas – sensação, intuição, sentimento e pensamento – e as quatros faculdades que segundo Descartes determinam os modos do pensamento – sensibilidade, imaginação, memória e entendimento.
É fácil relacionar sensação e sensibilidade, entendimento e pensamento. Intuição e imaginação demanda algumas explicações e definições. Já sentimento e memória é um desafio interessante que vismlumbro possívle de ser realizado.
Já há algum tempo venho refletindo sobre as relações entre imaginação e memória. Sabe-se hoje que as duas funções são processadas na mesma região do cérebro o que nos induz a pensar que a distinção entre uma e outra se dá em outra região e envolve outra função, certamente o que chamamos de entendimento. O fato de serem processadas na mesma região talvez se relacione com a confusão produzida pelos sonhos – que são “vividos” como se fossem reais pelo sonhador, origem do célebre argumento do sonho, de Descartes, que pode ser reduzido a uma expressão surpreendente: objetos não são condição de possibilidade de sensações! E como sabemos que sonhos são a matéria prima da psicologia análitica, essa analogia ganha um sentido especial.
Até que ponto imaginação e memória podem ser reduzidas a uma única função é uma hipótese sobre a qual tenho refletido, visto que aparentemente a distinção é externa a elas.
O segundo aspecto, diz respeito à maneira como Jung relaciona as funções psíquicas em pares: sentimento e pensamento, que diriam respeito ao valor atribuído ao objeto; e sensação e intuição, que diriam respeito à forma como ele é apreendido.
No entanto, pensamento e intuição , se entendermos pensamento como dedução, são as duas formas como o entendimento forma uma idéia: ou pela sucessão dos elos de uma cadeia dedutiva ou pela apreensão imediata da idéia “de um só golpe”. Sentimento e sensação guardariam entre si uma disitinção semelhante, também relativa ao tempo. A sensação é a imediata apreensão dos dados sensíveis e o sentimento é algo, no meu entender, mais “maturado” – numa definição precária e provisória.
Enfim, gostaria de entender melhor a formação desses pares onde se combinam termos relacionados com o espírito (pensamento e intuição) e com o corpo (sentimento e sensação).