Como eu ainda não levito para sentar no ar, comprei uma cadeira. Linda. Antiga, envernizada num tom escuro, de espaldar alto e assento de palhinha indiana, ela é elegante e sóbria como o trono de um rei justo. Ela me encantou assim que bati os olhos nela, quando nos descobrimos num brechó de uma rua secundária do bairro.
Acho que o segredo do conforto que oferece está em sua simplicidade. Fixa na altura e na inclinação, ela parece ter sido feita sob medida para me manter na posição correta. Enquanto minha outra cadeira, cheia de regulagens, nunca parecia precisamente ajustada. A ausência de braços também me permite uma amplitude maior de movimentos e posições, mas sem bizarrices como escrever com os dois pés sobre a mesa – “um veneno para a coluna”, minha querida mestra dos segredos do corpo, Giselda Fernandes, não cansa de me dizer.
No mesmo brechó, mandei consertar outras duas cadeiras. O dono é um senhor dos seus 70 anos, falante, de uma simpatia às vezes ríspida, mas certamente agravada por súbitas vicissitudes que o obrigaram a uma solidão indesejada. Enquanto conversávamos, ele foi me oferecendo soluções para meus problemas – bem mais práticos do que os dele. Ronaldo me cobrou barato para colar as cadeiras e me arranjou um estofador para reformar os assentos, “o melhor do Rio de Janeiro, o único que ainda sabe fazer um capitonê perfeito”. Realmente, além de caprichoso, seu Darcy é quase um santo: quando cheguei em sua oficina instalada em outro sobrado próximo, ele estava debruçado sobre sua máquina de costura velha envolto numa tal aura de santidade que por instantes me senti não sei bem se em Amesterdã ou Praga, no século 17, diante de um secreto cabalista.
Ele também me cobrou exatamente o preço que eu pensara justo e o disse naquele tom envergonhado dos homens bons ao falar de dinheiro, como se desse a entender que sua arte não tem preço porque é divina e lhe veio de graça – e por dever temos de dar de graça o que de graça recebemos. Por isso, no mesmo tom envergonhado, aceitei sem regatear, concordando tacitamente que qualquer preço seria simbólico, mas que chegar àquele só em aparência mais justo aos olhos dos homens era nossa forma silenciosa de reverenciar a Deus.
Finalmente, foi Ronaldo que me propôs trocar uma terceira cadeira por esta que agora me serve. “Quanto você me dá de volta?”, ele perguntou. “Diz você…”. “Cem…”. “Oitenta?” “Noventa.” “Fechado!”. Note-se que, àquela altura, se tivéssemos dito “Chuchu!”, “Víspora!”, “Rui Barbosa!” tudo daria no mesmo.
Chovia, continuava chovendo aquela chuva que quase não se vê sob a luminosidade de um sol também oculto. E foi assim, sob o manto do invisível, que voltei para casa com uma cadeira na cabeça, imagem marcada pelo absurdo, que guardava remota semelhança com a Carta 12 do Tarot – para quem tivesse olhos de ver.
Antonio C. rs
Faltou o Peixoto depois do Henrique, Dorila. rs
É muito nome, não? Prefiro só Antonio Caetano. melhor ainda Antonio C, que parece nome de navio.
Concordo, Rose: Antonio Henrique Caetano, o Único.
(embora não vejas, esta tua crônica tem a cara de Budapeste).
Rei não sou, mas trono eu tenho. Seja como for, obrigado.
Você é o Rei das crônicas, o maior cronista vivo!