Não está claro até agora se Seláron foi assassinado ou se suicidou. Nas matérias não há menção a tiros, facadas, sangue. Há apenas a imagem contundente do artista deitado num dos degraus de sua escada, o corpo coberto por um lençol vagabundo, de um colorido desbotado que, bem ou mal, combina com a escada que ele recriara com pedaços dispares de azulejo num alegríssimo mosaico – que pode lembrar tantos artistas quanto se queira, mas que remete à arte simples, pobre, comum, a arte de remediar com o possível aquilo que parecia impossível de continuar existindo, arte do remendo e do retalho – um patchwork de azulejos, e é uma delicia cósmica passar pela escadaria, andar por ela, cercar-se desse colorido caótico que simula a própria vida, na diversidade de sua minuciosa desordem. (É preciso vir de um lugar quente como o Rio para entender o que é um azulejo, essa coisa que torna mais frio os ambientes, a delicia que é isso, e ainda mais se há cor…) E ele morreu ali, deitado num degrau, quase pronto para o velório que não houve de milhares de pessoas do Rio e de todo mundo subindo ou descendo para passar ao lado do corpo e deixar seu adeus.
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As matérias abusam dos chavões do tipo “O Rio está mais triste”, etc., tentando fazer da cidade uma vítima. Eu o que vejo é uma cidade cínica que devora seus benfeitores, que pouco dá e tudo quer de volta. O Rio é um gigolô que abusa e mata quem o ama.
O Rio é uma ilusão, uma ilusão pobre, triste e deformada. Uma cidade de arquitetura horrorosa – o pouco que presta foi criado pelos Guinle ou segundo o padrão imposto por eles no começo do século 20, e a arte sacra das igrejas abandonadas pelo materialismo bocó e cruel que domina o Estado. O resto é um lixo modernoso ou uma sucessão de modestos sobrados apoiados uns nos outros, memória de um Brasil sem aço para erguer-se além dos três andares.
A paisagem de cartão postal pode ser percorrida em três ou quatro horas, belíssimas visões do mar visto do alto, que denunciam o sentimento de exílio que nos habita desde cedo, mais do que qualquer apreço pela natureza. Ocupam essas vistas menos de um por cento de toda a cidade, que de resto é feia, suja, sem graça.
A beleza que há – e de fato há: a areia das praias é de uma finura rara e a temperatura das águas é inigualável; sem falar da beleza dos morros e das matas – a beleza que há não nos deve nada e foi o que sobreviveu ao descaso e à ganância. A escada Seláron era uma exceção. Não lembro de outra.
Já o carioca, se algum dia existiu, há muito se perdeu. É uma caricatura, uma entidade folclórica que encarna em figuras presentes em pontos turísticos em busca de trouxas que os remunerem com trocados.
A cidade real, aquela que pertence a quem mora aqui ou ao redor, é um lamentável e cruel equívoco fundado na arte vil de tomar de quem não tem e dar-lhes de volta apenas o suficiente para garantir os votos para se manter no poder.
A cidade real é uma roça high tech, tirânica, cruel, onde a ignorância faz par com a esperteza para que nada mude e continuamente se degrade. Dias piores virão.