Morrer. De novo, morrer – que isso já se tornou um hábito em minha curta vida. E depois há quem acredite em reencarnações. Morre-se tantas vezes numa só vida que não pode haver outras. Para quê? Para aprender a ser bom? Ora, se nesta não aprendo, não serão outras mil que me ensinarão. É ver Deus o que queres? Pede, tem fé, reza. É o que basta. Ele, se quiser, mostrará Seu rosto. Ou achas mesmo que podes conquistá-Lo, suborná-Lo, alcançá-Lo por teu mérito ou vontade? Enfim, enfim, enfim: morre-se muitas vezes até a morte definitiva e óbvia, aquela abominável que tanto trabalho dá aos outros e tanto os assusta, deselegante lembrança, inevitável presságio. Mais discretas são essas tantas mortes que vivemos – ou vivo eu, não sei, sem que os outros nem se dêem conta. E lá vou eu seguindo o invisivel féretro de mim. Não choro, não lamento: sou mais padre e coveiro que parente neste enterro, pois do morto quase não tenho lembrança; fomos vizinhos, digamos assim. Atiro-lhe as derradeiras flores, faço-lhe uma prece e o enterro sem dor, sem remorso e com algum carinho pelas vezes em que bati em sua porta e ele me atendeu com a atenção precária que dedicamos ao próximo. Morre-se muitas vezes nesta vida de doenças várias. E quanto mais mortes, mais vivos somos.
* * *
Essa chuva, esse silêncio, esta estranha calma feita de nada, sem causa nem merecimento, de um vazio que facilmente se atribuiria ao fracasso – e com razão. Nada restou e de novo é do zero que começo, como um náufrago que numa desconhecida praia aportasse: aqui, tudo é riqueza porque tudo é pouco, vário e díspare. Agora, tudo que do mar me chegue é delicada dádiva que me enche de alegria.
Este trecho é bonito demais: ” sou mais padre e coveiro que parente neste enterro, pois do morto quase não tenho lembrança”.
Entendo tanto isso. Mas sei que constatar-se morto é estar vivo em dobro.
Esta argumentação é precisa:
”Morre-se tantas vezes numa só vida que não pode haver outras. Para quê? Para aprender a ser bom? Ora, se nesta não aprendo não serão outras mil que me ensinarão”.
Se eu tivesse dúvida quanto à possibilidade de reencarnação, acabou.
E agora me sinto frágil e assustada. Porque ela me protegia, fosse pelo mal.
E hoje preciso me reconstruir. Tirar a impressão de que nada sou. Matar a ideia de que não sobrevivo sem família.
Esse trabalho não será fácil. Mas tenho consciência de que terei de executá-lo, assim como se cria uma sinfonia, assim como se escreve um livro.
Sou um livro inacabado. E, morto em excesso.