dos personagens

“A mula chapinhou através da clareira e entraram de novo na floresta. Ter vencido o desespero não significava, é claro, que não estivesse condenado, mas simplesmente que, após certo tempo, o mistério se tornara demasiado grande… um condenado pondo a Deus na boca dos outros homens… que estranho servo do Diabo, esse! Seu espírito estava cheio de uma mitologia simplificada: São Miguel de armadura abatia um dragão e os anjos tombavam do céu como cometas de belas cabeleiras flutuantes, por se terem enciumado, como um dos padres da Igreja o dissera, de que Deus concedesse aos homens o imenso privilégio da vida… desta vida.”

Graham Greene, O Poder e a Glória.

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“Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção.”

Jorge Luis Borges, numa entrevista.

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Como sempre, Borges – preciso, esclarecedor. A mim, tão dado a confissões enviezadas, a certo sentimentalismo falsamente austero, agora, no terço final da vida, me ocorre sentir pudor de escrever. E sinto então a necessidade de me encobrir de fábulas e símbolos. De aprender a narrar, sob a pele de múltiplos personagens isso que fiz de mim – para maior glória de Deus ou com sua permissão, ao menos, mesmo que não O entenda. Preciso aprender – verdadeiramente aprender – que quando “A mula chapinhou através da clareira e entraram de novo na floresta” ela é o símbolo da alma do padre que também chapinha na lama antes de entrar de novo na treva pessoal que o atormenta – como o Cônsul, nesse mesmo México, à mesma época, em outro livro também terrível (Sob o Vulcão, Malcolm Lowry) e, no entanto, tão didático sobre a arte de escrever, de como se estrutura uma história e de como se revela uma alma, de como ela se reparte em tantas outras, como se fossemos também legião, como se a totalidade das formas nos habitasse, como se a perfeição nos habitasse imperfeitamente, pedaços imperfeitos de perfeição e de lá saíssem para gerar esses estranhos seres, os personagens: nem homens, nem anjos, nem arquétipos – mas o quê?

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