dia dos pais

Carta de um pai morto para seu filho

Meu filho, meu eternamente amado filho:

Sou teu pai. Posso sentir a angústia que às vezes toma conta do teu peito quando os olhos da tua alma se voltam para o passado. Não se iluda, meu filho. Nada poderia ter sido de outro modo. Acredita em mim, na privilegiada visão que todo morto tem do Tempo: não há razão para culpa ou arrependimento. Fomos todos o melhor que pudemos ser. E há mais mérito nisso do que podem imaginar os vivos. Mas, saiba: se a alguém coubesse dizer “desculpe” e “obrigado”, seria a mim, mais do que a ti.

Minha vida foi muito dura, meu filho. Tu sabes. E o pressentias em meus silêncios e logo cedo tiveste o gentil pudor de pouco me interrogar. E se um dia chegaste a sentir vergonha de mim, não te aflijas mais por isso: também eu neguei meu pai em algum momento – e não sem motivo. Repito para que não esqueças: são os pais e são os mortos que devem explicações aos filhos e aos vivos. A responsabilidade – não a culpa! – cabe a quem sabe, ou deveria saber, mais.

Nem sempre é assim. Não há mérito em morrer. A morte não nos torna melhores. Tampouco a vida nos torna melhores. Só o amor, meu filho, nos torna melhores. Por isso eu te agradeço: pelo amor que me deste e pelo amor que despertaste em mim. Sem ti, ele jamais vicejaria. E se às vezes eu não soube estender a precária ponte do meu coração ao teu, não te martirizes por isso. Ao contrário, perdoa.

Já te disse, te acalma: nem eu, nem tu poderíamos ter sido melhores. Mas eu te agradeço por teres sido, de uma maneira secreta e misteriosa até para mim ainda, por teres sido o menino que eu não pude ser. Aquele menino que por 60 anos não pôde fazer outra coisa senão trabalhar, diligente e resignado. O menino tímido e solitário que, à noite, exausto, ainda arranjava tempo para chorar a saudade da mãe.

Sei que não conseguirás ler esta carta sem chorar, esta carta psicografada por ti mesmo. Chora. Será a última vez que choraremos de tristeza. Doravante, estaremos livres. Livres para continuarmos juntos nossa busca. Tu mesmo te surpreenderias com a extensão de nossa linhagem. Somos um e somos muitos de um modo que é impossível explicar aos vivos.

Confia em mim. Confia no amor que nos une e em ti também viceja. Deixa que cresça para que cresça também o menino que queria tudo, menos trabalhar. O menino que sentia saudade da vastidão dos campos e do colo da mãe. O menino que se aventurou e no fim, apesar de tudo e por tudo, pôde dizer para si mesmo: “Fui feliz” e deixou esse mundo num jato de luz.

Fica então, meu filho, com o beijo e o abraço comovido desta alma portuguesa (que também és tu).

Do teu pai, eternamente.

* * *

Carta de um filho ao seu pai morto

Meu querido e saudoso pai:

Eu não sabia: há lágrimas que libertam. Uma emoção há tanto tempo congelada se dissolve e escoa vindo do sem fundo de mim para ganhar a luz. E me sabiam bem essas lágrimas, quentes e salgadas, deslizando dos olhos até a boca. Agora sei: só dando a luz a si mesmo um filho pode ser seu pai. Muito aprende um filho com seu pai, mesmo que ele esteja morto. E talvez até mais.

Pois agora nos falamos, meu pai, de alma para alma, sem a mediação das palavras. Não que a vida tenha se tornado mais fácil. Não ainda. Mais do que nunca, ela me aparece como um enigma – silencioso, fulgurante, bruto: um enigma de fogo. Mas já sei que não somos nós ardendo no centro desse enigma.

Será o amor? O abraço que você me deu na noite em que pedi para que viesse em sonho me perdoar, e as palavras que você disse lá e repetiu depois em sua carta (“Eu também preciso do seu perdão”) me lançaram subitamente num cume altíssimo de onde se divisa apenas o vasto horizonte e o abismo. Só o vôo me resta – certeza destituída de asas. Ainda. Você é meu Dédalo e eu serei um Ícaro prudente, porque nossa história está agora destinada ao sucesso. Onde queremos ir é vontade de poucos. Árduo é o caminho. E solitário.

É desse sucesso que falo e não da vaidosa tagarelice do que passa por presente sem ser nada. Livre, posso dar as costas a tudo e partir. Nem as palavras serão mais necessárias. Estamos quites; estamos juntos. Nem tudo o que você me disse eu consigo enxergar. Ainda. É tão estranho estar vivo quanto deve ser estranho estar morto. Em tudo, sempre, nos aguarda o Mistério.

* * *

No dia em que recebi sua carta, me deparei, por acaso, com estes versos (que são também uma homenagem a uma amiga nossa):

“The entire world is in flames, the entire world is going up in smoke. The entire world is burning, the entire world is vibrating. But that which does not vibrate or burn, which is experienced by the noble ones, where death has no entry — in that my mind delights.”

Em português, ficaria mais ou menos assim:

“O mundo inteiro está em chamas, o mundo inteiro se esvai em fumaça. O mundo inteiro está queimando, o mundo inteiro está vibrando. Mas aquele que não vibra nem queima, aquele que só os nobres experimentam, aquele que a morte não penetra: é lá que se deleita minha alma.”

Eis, de nós, um resumo.

(Os dois textos foram publicados em abril de 2006 no jornal carioca Tribuna da Imprensa)

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