Foi em frente a esse prédio arredondado da esquina (no canto direito, em frente ao São Luiz) que eu vivi uma das minhas primeiras epifanias – esta especialmente única porque implicou em desafiar a morte. Eu devia ter uns oito, nove anos talvez. Estava bem na esquina, sozinho, e cismei de passar para o outro lado da rua. Então, de repente, num rompante, tracei mentalmente uma trajetória e saí correndo entre os carros e ônibus, sempre avançando veloz, mas ajustando minhas passadas segundo o cálculo imediato e simultâneo da velocidade e trajetória de todos os veículos ao redor. Lembro nitidamente da expressão atônita do motorista de um 180, um daqueles antigos trolleys elétricos adaptados para funcionar à gasolina, ao me ver avançar contra ele. Eu era, naquele momento, a moveable feast, inteiramente embriagado com a velocidade e poder dos cálculos mentais que se ajustavam à perfeição aos movimentos do corpo.
O prazer que aquilo me dava está até hoje registrado no meu corpo inteiro: era como se eu descobrisse ali uma outra dimensão do invisível, não exatamente sobrenatural, mas supernatural, no sentido de estar inscrita na realidade invisivelmente, como as ondas de tv e rádio, e que podia ser descoberta e percorrida baseado em cálculos que a mente produzia e o corpo aplicava intuitivamente em perfeita sincronia, sem a intermediação de números, papel, lápis, máquinas. Eu sabia disso, como qualquer criança, mas nunca testara sua veracidade de um modo tão extenso e arriscado, numa ambiente onde tudo estava em movimento!
Quando cheguei do outro lado, o que não deve ter me tomado mais do que alguns segundos, era como se tivesse tomado posse de um novo mundo plástico e dócil aos designios do meu corpo e do meu espírito, um mundo submisso à combinação de mobilidade e lucidez que naquele momento se revelavam como as marcas da minha essência. Mas tudo isso nao eram palavras, mas um júbilo incompartilhável – e, até hoje ao menos, intraduzível. O menino se sentia secretamente herói e já não sabia o que fazer de si mesmo, tão grande era o mundo e suas possibilidades.
Obrigado, João!
Como sempre um lindo e invejável texto. Você é um membro da corte de Lorenzo dè Medici teleportado para o século XX.