Surpresas no jardim

Anunciação, Paloma Perez

Me aconteceu uma ótima. Estava trabalhando, quando ouvi uma barulhada na sala. As janelas aqui em casa ficam permanentemente abertas e com as persianas levantadas. Há luz, mas pouco sol direto, então precisamos aproveitar ao máximo, eu e minhas plantas.

Porque tenho um monte de plantas. O canto próximo às janelas da sala está se tornando meu jardim e é lá que gosto de rezar o rosário. Fui aos poucos decorando esse canto com imagens alusivas aos mistérios – há uma capelinha de Nossa Senhora cercada de anjos, um presépio que não desmonto mais, um crucifixo lindo que herdei de minha tia, um Espírito Santo entalhado em madeira que ganhei de um amigo, um quadro que vejo como uma Anunciação moderna – e à noite acendo umas velas e fico ali, rezando devagar, meditando mais ou menos longamente sobre cada mistério, porque cada mistério é um exercício espiritual e tudo que importa está lá nos mistérios, como um catecismo vivo.

Mas eis que no meio da tarde ouço uma barulhada no jardim. Corri pra ver o que era. Esqueci de contar que durante o dia também mantenho umas garrafinhas de água com açúcar para os beija-flores penduradas nas janelas, então já aconteceu de um se perder aqui dentro.

Só que não era um beija-flor. Era um pombo.

Quando cheguei, ele parecia descansar sobre os livros na mesinha ao lado do sofá, mas ao me ver atirou-se de novo contra o vidro, suas asas misturando-se com as folhas da rafia, até que finalmente conseguiu sair.

Corri para a mesinha e dei por falta do meu terço, um do muitos que tenho espalhados pela casa, que um amigo me trouxe de Fátima. “O pombo levou meu terço!” Foi a primeira coisa que me ocorreu. Achei poético e até plausível: o terço é de madeira e vai que ele o confundiu com a ração que eu coloco no parapeito quando por aqui me aparece algum bem-te-vi, mas que os pombos também adoram?

Não achava o terço e um pombo beato, isso sim, seria implausível. Ainda mais que não era um pombo de um branco imaculado, mas um desses bem comuns, de um negro desbotado tisnado de branco. 

A controvérsia ganhava asas em minha imaginação quando olhos sonsamente distraídos acharam o terço no chão, encolhidinho, mas intacto.
Presumi que na ânsia de comer as contas, e as achando pra lá de indigestas, o pombo folgado acabou derrubando o terço no chão.

Nem beato, nem apóstata: um pombo pagão e guloso.