A caridade e o medo

Os Mistérios Dolorosos provocam a caridade. A caridade e o medo.

Por esse homem que se dispõe a morrer na convicção de que desse modo estará conquistando para mim a remissão dos meus pecados e a possibilidade da vida eterna sinto um inexprimível carinho, um amor profundo, um ímpeto de defendê-lo, de tomar seu partido, como se fora ele meu filho ou meu pai.

Fosse ele simplesmente um homem, um louco delirante que houvesse imaginado essa hipótese de uma redenção magnífica e absurda, só por isso já mereceria as minhas lágrimas e uma doída covardia de apóstolo (pois sinto medo), por toda dor que ele se dispõe a suportar por conta dessa crença tão generosa, tão estupidamente generosa, porque incompreensível para todos ao redor, da maioria que faz troça de seu auto-sacrifício, aos poucos, os escolhidos, que se escondem por medo de um destino igual.

Mas acontece que Ele é Deus. Deus feito Homem. Sei disso como o sabia o anônimo centurião eternizado na exortação três vezes repetida que antecede a Eucaristia: “Senhor, eu não sou digno que entreis em minha casa, mas dizei uma palavra e minha alma será salva…

Sei pela mesma delicada força da fé, que já antes, nos Mistérios Gozosos, se instalara em mim pela via do encanto de um Deus-bebê cercado de animais, de magos, de pastores, num estabulo iluminado por estrelas e anjos, cena que é para mim uma espécie de batismo, repetido a cada segunda e quinta-feiras, quando recito esse terço tão feliz, tão alegre, tão infantil e que tão fortemente contrasta com este outro, o dos Mistérios Dolorosos, que é para mim uma espécie de Eucaristia, a secreta Eucaristia das terças e sextas feiras…

Minha fé amadurece na caridade que me é oferecida, de Homem para homem, com tamanha generosidade que me impõe essa palavra que só aqui, neste cenário de carne e sangue, Sua Carne e Seu Sangue, reverbera seu sentido lato: “Obrigado”.

O único modo de agradecer-lhe é obrigar-me ao amor. É retribuir o amor recebido, devolvê-lo.

Deus feito Homem pede-me em retorno de Seu amor que eu o ame amando a meu próximo como a mim mesmo: “…todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.”

Torno-me imagem da Tridade: Deus, eu – tão único, apavorantemente ínfimo e único – e esse misterioso outro que é literamente todos, mas um a um, e principalmente aqueles a quem mais rejeite…

E assim, torno-me mistério para mim mesmo.

Esse é teu jugo, levíssimo, inefável, e, de imediato, terrificante: “Sede perfeito como o Pai é perfeito”.

Perfeito em quê?

No amor – incondicional, indiscriminado, desigual em sua justiça, firme, prático – porque eu, o ínfimo, “tantas vezes reles, tantas vezes vil” – sou capaz dessa perfeição pela graça de Deus conquistada na cruz…

E só por esse amor me posso salvar.