Presente de amigo

Há muitas maneiras de se tornar inesquecível. De se tornar alguém que será chamado de meu amor ou de meu amigo, A gentileza, a generosidade, a gratidão são formas visíveis em atos que vão esculpindo no ar essa presença tão secreta, mas imune ao tempo e à distância.

Estou dando voltas porque de fato estou emocionado. “Sem palavras”, como se diz. E é nessas horas que mais corremos o risco de ser prolixos.

O fato é que meu amigo Kim passou uns dias aqui em casa. De manhã, depois do café, ele sempre saía para dar uma volta por aí. Então, quando acordei no seu último dia no Rio e não dei por ele, não me preocupei. Mas o tempo foi passando, começou a chover e aí até pensei em ligar. Mas não é porque inventaram o celular que nós passamos a gostar de telefone – e ele ainda menos que eu. Não demorou muito e ele chegou, meio molhado e sorridente. Tinha ido ao Saara (pra quem não mora no Rio, uma região do Centro onde um comércio popular dominado no passado por árabes e judeus se concentra em ruas estreitas de antigos sobrados do tempo de Machado). “Fazer o quê, Kim?”, eu perguntei espantado.

É a partir de agora que me faltam palavras para reproduzir o essencial. Seu rosto ganhou uma expressão marota de menino e ele foi me contando seu périplo por ruas mais que centenárias – Presidente Vargas, Senhor dos Passos, Alfândega, Regente Feijó, República do Líbano – porque ele lembrava dos seus tempos de Rio de Janeiro que por lá havia uma loja que vendia…

Interrompo a história aqui para uma firula literária que acrescente algum suspense. Tanto o Kim como eu gostamos de cozinha. Herdei de minha mãe uma panela grande de alumínio que me serve para fazer carnes (mas também, sopas e feijões). Sua qualidade é controversa, mas o certo que eu a adoro, e é a única panela grande que tenho. Só tem um problema: não sei bem como, mas sua tampa sumiu!

Pronto! Acabou o suspense: Kim tinha ido atá ao Saara na manhã chuvosa do seu último dia no Rio porque lembrou que por lá havia uma loja que vendia panelas!

Eu já estava em festa – habemus tampa! – quando ele me interrompeu com a cara mais séria do mundo: “Só que lá não tinha tampa daquele tamanho!”

Dois ou três segundos infindáveis de frustração se seguiram, e eu já estava prestes a cometer algum lugar-comum do tipo “o que vale é a intenção”, quando ele cortou o ar com um afiadíssimo “Mas…!”, me olhando por cima dos óculos, o indicador suspenso na altura do nariz.

Surpresa! Do outro lado da rua havia outra loja, menor, onde, sim, ele encontrou a tão preciosa tampa da panela que restituiu para sempre o equilíbrio da minha cozinha, da minha casa, de todo o meu universo.

Obrigado, Kim! Obrigado por ser inesquecível.