Eis que de novo me vejo na contingência de ter de acreditar que tenho um corpo, que ele é meu e me foi dado por Deus como algo indistinguível da minha alma e que portanto ele é livre e plástico, submetido ao tempo, às circunstâncias e à minha vontade segundo uma equação que me aconteceu perder, mas que está ao meu alcance recuperar. Eis que de novo me vejo a desafiar a filosofia, a teologia, a doutrina nessas poucas linhas, apenas porque é assim que sinto e não como me dizem ou leio, e prefiro crer no que me falo de mim eu mesmo, essa precária unidade, abalada na origem pelo pecado e, no imemorial cotidiano, pelo erro que dele decorre, essa estranha forma de cegueira que é o ceticismo em suas múltiplas formas que querem todas me separar de Deus e de suas criaturas, e entre elas,eu mesmo, negando-me o presente, porque o presente é o corpo, e negando-me a a eternidade, porque a eternidade é a alma, ao me negar essa unidade, ora querendo fazer do corpo uma prisão descartável de que só a morte me libertará, ora uma bomba-relógio que vai corroendo os instantes até explodir no nada, ora um monstro feito de partes desconexas, ora, ora, ora, tic-tac, tic-tac, tic-tac, tic-tac… Não! Não é assim que eu sinto. E se me engano, que eu me engane sozinho, satisfeito da certeza que me vem, de mim para mim. E se peco, que a misericórdia de Deus me alcance, porque não há malícia nessa minha crença tão discreta e tão necessária neste instante em que o tempo já é escasso, e as dores uma espécie de presságio, a indicar o necessário caminho da economia, que é também uma forma de redenção. Envelheço e nunca me senti tão jovem. Sinto dor e nunca me senti tão uno. Deus deu-me a vinha para ver crescer as uvas de que fará seu sangue. Seu jugo é leve e sua promessa maravilhosa.