Minha primeira preocupação, quando a ideia da quarentena se impôs, foi com os meus amigos da rua. Sei, porque converso com eles, que eles vivem um dia de cada vez.
Alguns conheço pelo nome. O Luciano, por exemplo, é um homem grande, forte, mas doce como criança, que se tornou mendigo talvez por conta de problemas mentais. Ele some às vezes, mas, quando aparece, fica sentado sempre no mesmo lugar, o que é uma característica comum de quem não tem casa.
Uma vez lhe perguntei porque escolhera aquele lugar e ele tentou me explicar que ali, numa determinada hora do dia, descia uma luz do céu que ele não teve palavras para descrever. Em sua ansiedade para me revelar esse segredo essencial de sua existência, ele lutava com as palavras e a própria gramática parecia não dar conta da epifania quase diária que ele experimentava naquele lugar. Eu, que conheço bem essa dificuldade, fiquei comovido com ele partilhá-la comigo.
Jamais vi Luciano pedir. Ele simplesmente fica ali, largado no chão, conjecturando, muito atento à sua vida interior e ao que, externamente, é invisível aos passantes. Mas sempre que lhe dou alguma coisa – dinheiro, comida, bom dia, papo – ele agradece surpreso, como se não esperasse nem precisasse disso.
Outro dos meus prediletos é o Marcelo. Ele fica numa esquina movimentada do Catete tocando reggae e rock, só na voz e violão, sem o artifício nefasto da amplificação sonora. Só por isso mereceria o meu respeito. Ele é um negro retinto, muito magro, curtido de sol e tempo, com uns dreadlocks longos e bem cuidados que lhe dão ares de xamã.
Uma vez, ele me contou que já trabalhara em muitas coisas mais regulares pelo Brasil afora, mas o impulso da arte foi mais forte e, um dia, ele mandou tudo às favas, aceitou a sua sina e foi viver do risco de ser artista. Sempre que posso, especialmente nos dias nublados ou chuvosos, me esforço para salvar seu dia.
Há também o seu Zé Carlos, um senhor muito preto também, pequenino, ágil, e elegantíssimo. Aliás, mais do que isso: fashion, sempre combinando cores e tons fortes na medida, apesar das roupas simples. Ele tem estilo, enfim. Vende plantas aromáticas e medicinais, e produz seus próprios chás, segundo receitas que aprendeu nos livros. Usa um carrinho que lembra aqueles de pipoca, com tudo muito bem organizado e limpo. É um espetáculo visual vê-lo em seu ponto.
Uma vez, fomos juntos ao terreno baldio onde ele guarda suas plantas. O terreno fica nos fundos de uma loja e resultou, presumo, da derrubada promovida pelo Estado para a construção do metrô. Como está longe da rua e cercado por muros altos, ninguém se dá conta de sua existência. Mas seu Zé Carlos tem a chave da porta de metal que dá acesso ao terreno. Para mim, foi como atravessar um portal para outra dimensão, ao mesmo tempo mágica e perigosa, inacessível aos mortais comuns. Parecia esses jardins meio selvagens das fábulas infantis, e descobri, para minha surpresa, que seu Zé Carlos também o usava para cultivar algumas de suas plantas. Incrível…
Enfim, enclausurado voluntariamente há tantos dias seguindo o que me parece um dever cívico, penso nesses companheiros de viagem cotidianos e sinto saudade deles. É bom tê-los para poder lembrá-los e rezo para que estejam bem.