As noites estão mais longas. Cada vez mais longas. Como tenho acordado cedo, ainda é noite quando desperto, aos poucos, dessa outra vida que são os sonhos. Gosto de vivê-la, essa outra vida, pois lá também o critério da verdade é o corpo, ainda que liberto das amarras da ilusão verdadeira do tempo e do espaço separados, essa limitação que nos impõe a gravidade em que vivemos, e que nos faz pensar (e pesar) que tudo estará sempre inexoravelmente perdido.
Não está. E os sonhos são a prova, a antecipação talvez de uma outra vida onde o corpo glorioso terá de seu para sempre tudo que lhe for próximo, sem diminuí-lo, sem amarrá-lo, mas sobretudo sem perdê-lo. Um corpo espiritual seria – e essa aparente contradição de termos nos dá a vaga ideia de onde tão longe vamos quando sonhamos.
Acordo e ainda está escuro: vou amanhecendo com o dia, me alongando bem devagar, deitado no chão, “o melhor amigo do homem”, como me ensinou minha querida Gi. E como é imenso o corpo se o percorremos de olhos fechados e atentos, escuridão sobre escuridão que só faz destacar as linhas que nos percorrem e bordam no tecido do mundo.
Escuridão, silêncio e o discretíssimo movimento, invisível a quem de fora observasse esse corpo deitado no chão como se dormisse, imerso em si, mas desperto. Toco o que de imaterial sustenta a carne, e devagar me distendo com a delicadeza de quem aos poucos acrescenta fermento à massa do que será o pão, seu alimento.
Enfim, me levanto para dar de comer aos colibris – que daqui a pouco começarão a reclamar o seu sustento, o tanto de carinho que lhes devoto dia a dia – e café às vísceras.
Trago uma boa nova: o corpo é bom. E quem o descobre, descobre o mundo.