Poema é que nem piada: se a gente explica perde a graça. Mas, prometi à Mônica detalhar o último que escrevi. É que citei Mateus sabendo já da falta de intimidade das pessoas com os Evangelhos. Paradoxalmente, quanto mais culto o sujeito, menos íntimo.
Por coincidência, foi na mesma semana em que rolou na internet o tatibitati periódico sobre a leitura dos clássicos – Machado, como sempre, no centro da tagarelice.
No meu tempo, os eventuais problemas de vocabulário de Machado se resolviam com um dicionário do lado. E, claro, nem todo mundo era capaz de apreciar a elegância, a sutileza e a ironia de Machado. E sempre será assim.
Mas, se é pra falar de clássicos, vamos logo chocar com alguma novidade velha como o Ocidente: o clássico dos clássicos – aquele incontornável, sob pena de não se entender nada da literatura ocidental, da filosofia aos provérbios populares – são os Evangelhos. Já nem digo a Bíblia, que fica para os universitários, mas os quatro evangelistas, aquela zaga inexpugnável: João, Marcos, Lucas e Mateus.
E isso não tem nada a ver com religião, a despeito de Jesus estar mais ou menos no centro das três religiões que nos tocam mais de perto: é Deus encarnado para os cristãos, o maior de todos os profetas depois de Maomé para os islâmicos, e alguém sobre quem é melhor mudar de assunto para os judeus.
A importância que dou aqui aos Evangelhos, repito, é essencialmente literária, no sentido mais profundo do termo. É preciso lê-los para se dar conta do quanto eles impregnam nossa linguagem cotidiana. E quem duvidar que atire a primeira pedra.
Enfim, os Evangelhos deveriam ser lidos logo cedo, numa clave eminentemente literária e depois que cada um seguisse seu caminho segunda sua tradição familiar.
Falei, falei, falei e não expliquei o poema!
Melhor a esta altura repeti-lo. É curtinho:
Mateus, 22, 30; 27, 7
Cemitério de estrangeiros ou forja de anjos:
eis o que é o Mundo, verdade revelada ao custo do Teu sangue.
Liberta-nos saber.
Custa-nos mais ouvir que somos todos irmãos, por consequência.
Entre o poder e o amor, a tentação de ser maior arrasta-nos para baixo a todos – escravos e senhores, escravos senhores de outros escravos, senhores escravos de seus escravos – os pés fincados na história e no tempo, ilusões que confundem com a Providência d’ Esse cujo o coração ainda sangra pelas almas que não vicejam.
Primeiro, a nomenclatura do título. Mateus, todo mundo sabe, faz referência ao Evangelho de Mateus; 22 é o capítulo e 30, o versículo. Como são dois trechos do mesmo Evangelho, o ponto e vírgula os separa, para não ter confusão.
Em Mateus, capítulo 27, versículos 3 a 7, Judas, arrependido e desesperado, tenta ao menos devolver o dinheiro que recebeu para trair Jesus. Os sacerdotes não o aceitam de volta e ele atira as moedas no chão do Templo e sai para enforcar-se. Como aquele dinheiro está envolvido com sangue, ele não pode ser incorporado ao tesouro do Templo. Os sacerdotes decidem então comprar com ele um terreno para lá construir um “cemitério de estrangeiros”.
Não foi a primeira vez que li o trecho, mas foi com uma tristeza profundíssima que pela primeira vez percebi que não há definição mais exata para este mundo: cemitério de estrangeiros. Aquele que não tem fé, vive para morte numa terra que lhe é estranha, incompreensível até.
Divagando nessa ideia tão verdadeira e triste, abri de novo o Evangelho e fui parar no capítulo 22, versículos 23 a 30, onde um bando de saduceus tenta armar uma pegadinha para Jesus: a fim de questionar o sentido da ressurreição, lhe apresentam um paradoxo que desmentiria a doutrina. Na tradição mosaica, se um homem morresse antes de produzir filhos, seu irmão deveria casar com a viúva e dar-lhe filhos. No paradoxo dos saduceus, uma mulher casa sucessivamente com sete irmãos sem que nenhum lhe d? filhos. Na ressurreição, perguntam eles, de quem ela seria esposa?
A resposta de Jesus, como sempre, é desconcertante: no Reino não haverá maridos nem esposas, porque seremos como anjos.
Na mesma hora, a tristeza que se fizera em mim se dissipou: se este mundo, para o que não tem fé, é um cemitério de estrangeiros, para quele que a tem, é uma forja de anjos!
E assim nasceu o poema.