O amor que me deram estava estragado e eu comi assim mesmo para não magoar ninguém. Era veneno o amor que me deram. Um veneno que não mata, mas deforma até que no corpo não reste mais lugar para alma alguma: cadáver mecânico sem vontade de inventar-se para além da mímica que chamam “minha vida”, respondo resignadamente nem sim/nem não aos apelos do cotidiano. Apenas sigo indiferente porque é de seguir que se trata. E desse lamentável equívoco semântico faço versos para parecer outro Pessoa. É ridículo. Tão verdadeiramente ridículo que me comove, último traço de humanidade em mim. Autopiedade, chama-se.
Os olhos ardem, úmidos, mas nenhuma lágrima corre. Não haverá lágrimas – efeito lógico do veneno que me serviram como amor. O que procuro? “Felicidade ou morte”, poderia ter sido meu lema no passado em que pensei que drogas poderiam ser o antídoto para o veneno que me deram. E foram. Mas o veneno que chamaram de amor seduziu o próprio antídoto e de novo me vi sozinho com o amor que me deram e é tudo que tenho para repartir agora.
Pobre amor podre que nem sequer se envergonha de cheirar tão mal à vista de todos. Sinto pena do próprio veneno que me mata. Daí concluo que já posso morrer sossegado, certo de ir para o paraíso bom-mocista que premia os que renunciam à alma em troca de um corpo vazio. Um paraíso habitado por ninguém, ninguéns.
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Eu escrevo bem? Isso até impressiona muito. A literatura é uma atividade circense. Mas não há em mim nada a ser genuinamente amado, além da duvidosa habilidade com as palavras. Eu devia me amar mais, alguém certamente me aconselhará. É de se rir… Eu me amo muito. Eu me amo com todo o amor que me deram. E quem mais suportaria esse amor, além de mim? Quem vai querer um amor estragado? Quem pode amorosamente dar a quem ama um amor estragado? Mas é só o que eu tenho para dividir: o amor estragado que me deram e eu comi para não magoar ninguém.
Então deixemos isto de lado… O amor é um maravilhoso equívoco: você ama em mim aquilo que eu não sou, mas você acha que eu poderia ser, sabe-se lá porquê. E eu, se te amo, tento ser este que só você vê, apenas pra te agradar. Eis aí, o milagre do amor – explicado em pouquíssimas palavras. Eu disse que era hábil com as palavras – e quase posso ouvir os aplausos do respeitável público.
Acontece que, como toda mágica, o milagre do amor perde sua graça quando descobrimos o truque. Mas, não se apavore, leitor. Nosso próximo número chama-se “hipnose cotidiana” e você será induzido a esquecer o que acaba de descobrir.
Essa crônica foi publicada em outubro de 2014, na coluna semanal Crônicas de Amor e Perplexidade que mantive no jornal Tribuna da Imprensa de 1999 a 2019.