Domingo

“O silêncio cinza da tarde chuvosa”: o cinza do cimento, do amianto, do alumínio, do concreto. Das nuvens, da chuva. Da luz que disso tudo resulta. O silêncio vivo das gotas tamborilando pelos telhados, nos vidros, no chão em tantos tons e intensidades que mais parece jazz, cool jazz, tão distintos e dispersos, e ainda assim, carícia…

É domingo. As nuvens passam lentas. E na tarde tudo descansa – como Deus um dia.

Sinto a imensa solidão de ser tudo isso que ouço e vejo e penso e sinto. Solidário e só, sem dor nem dó, “assisto no que assisto” – truque semântico que nos poupará de muitas frases, leitor.

“Tudo é bom”, me disse Kim um dia citando Glauber.

O bem-te-vi diz quem é ao longe e, no fundo da paisagem, as palmeiras coloniais indicam que isto é a eternidade.

Não há ninguém nas varandas nem nas janelas. Apenas eu debruçado no parapeito faço este exercício de caligrafia. “As nuvens são a caligrafia do vento”, escrevi ontem. Caligrafia: há quanto tempo não me via assim exposto neste espelho: vejo-me na minha letra – e todos que me foram exemplo, desejo, inveja. Sou tantos… Sou todos: sou eu.

A voz, a letra, as palavras que escolho são também eu – e mais essa vista que conheço há 50 anos já – e que muda sem envelhecer.

Tudo sou eu e ainda mais há para ser. Nem na morte cessarei.

Deus é grande e quis ser homem. Talvez isso explique a Criação.

Não sei… Sei que chove e isso é bom. Com certeza.