A espessura da realidade

Acusam-me de fugir da realidade e refugiar-me no sonho. Penso que não se pode considerar a realidade como um panorama de superfície única, pois uma paisagem tem várias camadas, e a mais profunda – aquela que somente a linguagem poética pode revelar – não é a menos real.

Quero ir além da epiderme das coisas. Chamam a isso “gosto pelo mistério”. Aceito de bom grado a expressão, com a condição de escrever mistério com M maiúsculo. Porque não me refiro ao mistério, cultuado por alguns, que não passa de um sucedâneo poético com que querem salpicar a realidade. Para mim, o Mistério é o mistério do homem, as grandes linhas irracionais de sua vida espiritual: o amor, a salvação, a redenção, a encarnação…

No centro dessas camadas sucessivas está Deus que, para mim, é a chave dos mistérios.
Creio que Jesus é não somente o maior personagem da História da Humanidade, mas que ele continua a sobreviver em todo aquele que se sacrifica pelo seu próximo.

Ignoro os dogmas católicos. Sou, talvez, um herege. Meu cristianismo é bruto. Não frequento os sacramentos. Mas penso que a oração poderia ser considerada como uma ginástica que nos aproxima cada vez mais do sobrenatural. Pratiquei-a antigamente. Agora, só sei rezar na hora do medo e da tristeza. É preciso saber rezar na hora da alegria.

Entrevi o caminho da salvação. Antes, a religião era, para mim, uma simples suspeição da alma. Um dia, encontrei um anjo que me estendeu a mão. Segui-o. Mas, depois de ter dado alguns passos, deixei-o e voltei atrás. Ele, porém, permaneceu em pé, no mesmo lugar, esperando-me. Eu o revejo nos momentos de sofrimento, cada vez um pouco mais envolto em brumas. Eu lhe digo: “espera”, “espera”, como eu o faço com qualquer um. Receio que, um dia, eu o chame e não mais o possa encontrar.

Mais do que Jesus, o anjo foi sempre aquele que me despertou do meu torpor espiritual.
Quando eu era criança, ele era a encarnação de um mundo fantástico. Depois, ele se tornou a encarnação de uma urgência moral.


Esse texto é atribuído a Federico Fellini.

É tão bonito que me parece plausível.

Deixei para revelar o autor no fim para que o leitor provasse da sua beleza sem se deixar contaminar pela autoria. Busquei o original em italiano ou a versão em inglês ou francês, mas não achei. Talvez não tenha me esforçado o bastante. Dei uma ajeitada na tradução para o português. Troquei “espessura” por “camada” no texto, mas no título usei a palavra “espessura” porque ela denota a soma das camadas – que é, no fundo, do que se trata. Mudei também alguns tempos verbais, cortei alguns pronomes, e um ou dois adjetivos supérfluos. O texto ganhou mais fluidez, sem perda de sentido.

Pensei em rubricar uma frase, mas essa ênfase seria minha e não de Fellini. Por isso, por fidelidade, desisti. A frase é esta: É preciso saber rezar na hora da alegria. A ideia envolve gratidão, mas vai muito além disso. Tem a ver com aquilo que os padres chamam de “amizade com Deus”.