Hitler e Buñuel

“Era tudo falso e profundo, irreal ao mesmo tempo.
Eu era pela tagarelice total.
A gente devia apelar para a maluquice.
As pessoas já tiveram a sua cota de enredo e personagem.”
Henry Miller

O telefone-lagosta em um pedestal à frente do palco, à direita da platéia. O telefone-lagosta toca insistentemente. (É importante que o telefone já esteja tocando quando a platéia ainda estiver no saguão, esperando a abertura das portas e o início da peça).
No palco, Hitler se apronta diante de um espelho. Ele se ajeita, anda, pára, ansioso. O telefone-lagosta toca sem parar, mas ele não atende.
Entra Buñuel pela esquerda. Ele vem devagar, tomando conhecimento do lugar, procurando o telefone com os olhos. Parece se surpreender ao descobrir que é o telefone-lagosta que toca, aquela criação de seu parceiro Salvador Dali quando ainda viviam todos em Paris.
Hitler, que percebera sua entrada, o espreita das sombras. Buñuel contempla o telefone-lagosta e avança para ele, admirado, sem se dar conta de Hitler. Quando vai atender, Hitler salta e Buñuel estanca. Os dois se encaram em silêncio longamente. O telefone pára de tocar.
LB: Parou de tocar…
AH: Ainda bem! Fazia uma eternidade que estava tocando.
LB: Eu sei. Eu ouvia. Por isso, eu vim. Eu vim atender a chamada.
AH: É, mas desligaram.

LB: No começo, era só um ruído vago e distante. Mas foi se tornando cada mais claro, cada vez mais nítido. Eu estava certo que esse telefone tocava para mim e para mim apenas. E que tocaria para sempre até que eu atendesse…
AH: Que loucura! E quem você esperava ouvir do outro lado?
LB: Não sei… Eu não ousava pensar… Muitas vezes, sob as estrelas, antes de dormir, eu imaginava que quando chegasse aqui e atendesse ao telefone, o sentido de toda aquela longa caminhada por uma estrada que parecia não acabar nunca em direção a um telefone que só eu parecia ouvir, se revelaria, enfim… Seria a iluminação… A salvação… Ou alguma coisa terminada em ão. Qualquer coisa que não fosse mais “solidão”.
Mas por que você não atendeu?
AH: Eu não atendo telefones.
LB: Não?
AH: Nunca.
LB: Por quê?
AH: Eu gosto de parecer ocupado. Gosto de fingir que não estou.

LB: Pra quê?
AH: Isso faz com que eu me sinta poderoso. Não se preocupe, não era importante. Se fosse importante eu saberia.
LB: Para mim, era importante!
AH: Bobagem… Vai ver era engano.
LB: Não! Um telefone tocando sem parar é a própria imagem da certeza. Tocava para mim…
AH: É, mas parou de tocar que quando você chegou…
LB: Então: existe uma relação…
AH: Uma vaga relação, sim. Mas nada daquilo que você esperava!
LB: É verdade…
AH: Você estava crente que ia chegar aqui, ia atender ao telefone e pronto: tudo ficaria claro para sempre. E aí quando eu chego aqui, o telefone para de tocar…

LB: … e eu dou de cara com você!
AH: Você pensava chegar no Céu….
LB: E, na verdade, cheguei no Inferno!
AH: Ora, a mesma chave que abre o Céu, abre também o Inferno.
Veja as coisas sob o meu ponto de vista. Muitas vezes, enquanto esse telefone asqueroso tocava sem parar, eu me perguntava que porra essa merda estava fazendo aqui, uma nota de absurdo em meio a este cenário grandioso.
Confesso a você que, muitas vezes, como ninguém viesse atender, eu intimamente cheguei mesmo a desconfiar de que aqui fosse o Inferno. Imagine! Um telefone que não para de tocar e ninguém atende é a imagem perfeita do Inferno. Era como uma ameaça que nunca chega a se cumprir ou um pesadelo que noite após noite se repete.
Confesso que nessas horas de incerteza, mesmo que nem sequer um músculo do meu corpo demonstrasse o menor sentimento, no íntimo, eu olhava esse objeto nojento e sentia medo. Quem o teria colocado aí? E por quê? Pra quê? “Será isto o Inferno?” Eu também me perguntava, em silêncio.
E então você chegou e o telefone parou.
Um milagre! Um milagre que restituiu toda minha confiança!
E eis então que agora toda dúvida se dissipa! Mais do que o Céu ou o Inferno, estamos no portal de uma nova era. E você é o messias esperado, o meu Messias, o arauto que veio anunciar a minha chegada.

LB: Pirou? (para a plateia ou para si mesmo) bem-vindo ao Inferno! Mas quem diria? O Inferno é uma piada. Uma piada de mau gosto repetida sem cessar por um idiota às gargalhadas.
AH: Confesso que eu também sentia medo! Todo tipo de medo: medo que o telefone nunca parasse e, ao mesmo tempo, medo que alguém atendesse! Era como se o mundo pudesse acabar se alguém erguesse o fone e dissesse: “Alô”. Então, nesses momentos de coivardia, eu desejava que tudo continuasse como estava. Tocava sem parar, ninguém atendia, era chato, mas, ao menos, eu já estava acostumado. Era uma rotina, algo que durava, igual sempre, mas que eu podia chamar de história, minha história.
Nada acontecia, é certo, mas, em compensação, algo de grandioso sempre estava prestes a acontecer. E era essa iminência que me animava, que me fazia andar apressado, de um lado para o outro, como uma fera enjaulada, como um gladiador prestes a entrar na arena, as idéias girando febris em meu cérebro, os olhos faiscantes, as palavras na minha mente ensaiando silenciosamente um discurso interminável. Sim, às vezes parecia o Inferno, mas às vezes era muito bom…
Mas então você chegou e o telefone parou! Parou! Do nada! Como se o meu Destino tivesse se cumprido e então eu pudesse finalmente começar a ser.
Sua chegada só pode significar uma coisa: o fim de toda espera para mim! Vamos!

LB: Para onde?
AH: Para o Mundo!
LB: Não há nada lá fora. Só uma longa estrada vazia.
AH: A missão de chegar talvez tenha tornado você cego para o Mundo.
LB: Acho que sim… Eu vinha na expectativa de encontrar Deus… Não em carne e osso, mas ao menos uma voz ao telefone… No princípio era o Verbo, não é assim que se diz?
AH: Exatamente! Mas também se diz que Deus se fez Homem, não é verdade?
LB: Sim…
AH: E que Ele voltará, não é? Pois então… Veja bem… A divergência entre nós é só quanto à substancialidade do Deus, percebe? Você esperava ouvir uma Voz e se deparou com um Homem…
Vamos lá, seja razoável… Não estou pedindo para você acreditar em mim. Quero que você acredite em você mesmo… Era você quem esperava encontrar Deus e não eu, certo? Então, pense… Se eu tivesse atendido, você jamais teria vindo. Seu destino sempre esteve atrelado ao meu. Você não percebe? Se eu

não esperasse paciente e resoluto, se eu tivesse fraquejado e me deixado levar pelo medo ou pela ansiedade, você jamais teria chegado.
É como se fôssemos um só. Eu o Pai, você o Filho e esse telefone nojento o Espírito Santo.
LB: Todo mundo sabe que o Espírito Santo é uma pomba e não uma lagosta.
O telefone volta a tocar.
AH: Não atenda!
LB: Melhor atender…
AH: Eu tenho medo!
LB: Mas, pense, se continuar assim vai ser o Inferno de novo!
Lembra? Toca, toca e ninguém atende…
AH: Eu tenho medo!
LB: Deixe de bobagem! Medo de quê? Eu atendo, falo qualquer coisa e desligo.
AH: Então está bem! Atenda!

LB: Pensando bem…
AH: Atenda!
LB: Deixe tocar mais um pouco…
AH: Por quê?
LB: Eu também gosto de me sentir importante…
AH: Atenda…
LB: Espera…
AH: Muito bem! Eu preciso me arrumar…
LB: Não!
AH: O que foi?
LB: Não vá. Você está bem assim…
AH: Você acha?

LB: Acho.
AH: Então podemos ir.
LB: Não!
AH: Como assim?
LB: Não há onde ir.
AH: Como assim? O Mundo nos espera, já disse. Vai atender ou não vai?
LB: Por quê?
AH: Ora, não foi pra isso que você veio?
LB: Era outro telefonema. Vai ver, esse é pra você.
AH: Então, atende. E se for pra mim, diz que eu não estou.
LB: Eu não…
AH: Vai, atende…

LB: Não… Atende você…
AH: Eu já lhe disse, eu nunca atendo telefones. Ainda mais esse…
LB: Há sempre uma primeira vez. Atende!
AH: Não consigo…
LB: Justamente por isso! Atende! Quem sabe não seja esse o sentido disso tudo? Fazer você perder o medo.
AH: Ah, um medo tão bobo… Pra que tanto esforço para perdê-lo. Deixa pra lá… Não consigo nem me imaginar pegando nessa coisa…
LB: É só um telefone…
AH: Um nojo…
LB: Mas, pense uma coisa: Deus jamais ligaria para um telefone comum. E você mesmo disse: é o Espírito Santo.
AH: Você acha que pode ser Deus?

LB: Quem sabe? Tudo é possível.
AH: Mas você tem esperança?
LB: Tive…
AH: Então atenda!
LB: Eu disse “tive”. Não tenho mais…
AH: Por quê?
LB: Quando cheguei aqui eu tinha fé. Mas, depois que o telefone parou exatamente no instante em que eu ia atender, não sei, alguma coisa parece ter morrido em mim…
AH: Mas está tocando de novo!
LB: Eu já disse: é outro telefonema agora.
AH: Você não fica nem curioso? Juro, eu atenderia, se pudesse… Mas eu não posso. Por favor, atenda… Deve ser importante…
LB: Por isso mesmo! Eu não me sinto pronto…

AH: Por favor…
LB: Preciso recuperar a fé, a mesma fé que me trouxe até aqui…
AH: Eu vou me arrumar… Preciso estar pronto quando isso acontecer!
LB: Espere! Eu vou atender.
AH: Finalmente!
Buñuel aproxima-se do telefone, mas no momento em que vai atendê-lo.
AH: Não! Espere! Ouça!
LB: O quê?
AH: Preste atenção… Não parece uma mensagem em código Morse?
LB: Não estou ouvindo nada… Para mim é igual…
AH: Não atenda!
LB: Por quê?

AH: Isso é uma mensagem! Não interrompa! O outro telefonema foi só pra me trazer até aqui e juntos decifrarmos a mensagem. Faz sentido, não faz?
LB: Não! É só tão absurdo quanto tudo mais até agora!
AH: Eu nunca disse que não seria. Preste atenção… O que está ouvindo?
LB: Nada… A mesma coisa… Um telefone tocando igual a todos os outros…
AH: “Nada”, “A mesma coisa”… Vamos lá, decida-se! É desanimador…
LB: Você está maluco! Não tem mensagem nenhuma…
AH: Louco?! Você chega aqui dizendo que andou uma eternidade para vir atender ao telefone porque esperava, ao que parece, ouvir Deus do outro lado da linha… Então eu argumentei que em vez de uma mera voz, eu bem poderia ser um Deus encarnado…
LB: Você…
AH: Sim, eu! E por que não? Mas, tudo bem… Se lhe parece assim tão absurdo, ok. Mas agora, quando eu lhe proponho um outro olhar, mais racional, um método científico, a decodificação de um aspecto factível desse fenômeno

intrigante e aparentemente sem sentido que nos uniu, a mim, ao e esse telefone-lagosta, o senhor, antes tão crente, se declara um insensível, incapaz de distinguir um simples código Morse…
LB: Eu lá tenho cara de telegrafista!
AH: Preste atenção! Um curto, um comprido, um curto, um comprido. Acabaremos por decifrar o código e a mensagem… E então estaremos salvos.
LB: Isso vai levar outra eternidade! Cansei! Vou atender.
AH: E nos arriscarmos a perder tudo? Tenha fé na ciência! No poder do cálculo humano!
LB: Vou atender…
AH: Não!
LB: Estou me preparando…
AH: OK! Atenda de uma vez!

Buñuel vacila, perplexo, mas acaba por atender ao telefone. Ouve atentamente sem nunca falar nada. Hitler espera, movendo-se impaciente. Buñuel finalmente desliga o telefone.
AH: O que você ouviu?
LB: Nada.
AH: Nada?
LB: Era como ouvir o eco do mar numa concha…
AH: Eu sabia! Eu já tinha ouvido dizer que Deus estava morto!
LB: Vai ver ele morreu esperando que alguém atendesse. Que triste! Morreu e o telefone continuou tocando, tocando…
AH: E era isso que ouvíamos: um telefone sem ninguém do outro lado tocando sem parar. Enfim, é hora de partir. O Mundo nos espera.
LB: Não precisa mais…
Um grupo enorme de pessoas que toma o palco. Há cinco tipos de gente nesse grupo: os que rastejam, os que andam de quatro, os que andam de joelhos, os que andam de pé e os que andam sobre os outros quatro

tipos, numa infinidade de combinações cujo objetivo é respirar um “ar mais alto”, estar “mais acima”.
Respiradouros de mergulho são objetos de desejo porque permitem respirar “mais alto”. Hitler e Buñuel observam o mundo que vem na direção deles.
As pessoas formam um bloco compacto e colorido que se move num vaivém incessante. Um homem entre todos se destaca por ser carregado numa espécie de andor por quatro homens, muito maiores e mais fortes. Ele se aproxima de Buñuel e Hitler. Ele é Xy e veste-se vagamente como um bispo.
XY: Olá, olá! De onde vocês vão?
LB: Eu ia lhe perguntar mais ou menos a mesma coisa…
XY: Ora, ora! Nós estamos vindo para lá!
AH: E nós nem saímos daqui…
LB: O telefone? Onde está o telefone?
AH: Sumiu…
LB: E o que é isso?

XY: Ora, ora! Que pergunta tola! Isto é a Realidade!
LB: Parece o Inferno!
AH: Ih, lá vem você com essa história…
XY: Sim, sim! Parece, sim!
AH: Mas é a Realidade?
XY: É, é! A Realidade, a Realidade! Adeus, adeus!
AH: Espere!
XY: Sim, sim?
LB: Isto é mesmo a Realidade?
XY: Claro, claro! É tão evidente, tão evidente… Esta é a dura e cruel Realidade! Mas o que se pode fazer? A Realidade é assim. Cada homem é cada homem e cada homem é ainda muitos outros homens anteriores e futuros que, no entanto, são todos ao mesmo tempo um só homem: este que se é agora em cada um desses tempos que se encontram todos simultâneos na Eternidade.

E afinal? O que vocês esperavam? A Realidade é isto, meus caros! É isto! Vejam, vejam! Como eles lutam, como eles sofrem. Ávidos, violentos e, ao mesmo tempo, tão ternos, tão dóceis. Daqui de onde estou posso vê-los muito bem. E chego mesmo a admirá-los. É como se eu lhes pudesse ver a essência, estar e não estar lá entre eles, ser e não ser um deles. Do alto. Sim, sim! Esta é a dura e cruel Realidade, meus amigos. Mas vista assim do alto, sempre é possível extrair dela alguma Beleza.
Xy bate palmas, como se convocando alguém. Uma mulher entra no palco e dança entre aqueles corpos todos: sobe, pula de um para outro, é atirada, erguida, suspensa, numa coreografia movida à percussão de palmas, body percussion e ruídos vocais.
XY: A Beleza os excita e acalma. Em face dela, eles pressentem o que são e reconhecem intimamente que não mereceriam um destino melhor. Por isso, eles amam a Beleza: porque ela os justifica e humilha. Por isso, sofrem por ela e morrem por ela. Mas, seu amor é rancoroso e eles a matariam se pudessem. Vejam só… Não é estranho? Não é estranho?
AH: São volúveis…
XY: Sim, são movidos a sonho, desejo e privação. Sobretudo, privação. E quanto menos têm, mais sonham…

AH: É impressionante… Im-pres-si-o-nan-te!
XY: Sua sensibilidade estética me alegra.
AH: Obrigado, obrigado… Mas, uma coisa ainda me intriga. De que modo o senhor faz parte da Realidade?
XY: Boa pergunta! Estou, digamos assim, em outro nível, num estágio mais avançado. Olhe para eles. Agora, olhe para mim. Olhe para eles. Agora, olhe para mim. Percebe? A coisa se resume a “de onde eu vejo o mundo”. Eu vejo de cima. E o que eu vejo é: de um lado o Caos e, do outro, a Ordem, o Cosmos. A Realidade é muito complexa… Muito complexa. Entende?
AH: Acho que posso entender, se eu quiser…
XY: Que bom! Que bom! Uma vontade férrea e obstinada, eis a única força capaz de agir sobre a Realidade. Venha! Venha! Sente-se aqui! Sente-se!
Hitler sobe usando corpos que se oferecem com escada e senta-se ao lado de Xy.
XY: (Para Buñuel) O senhor também… O senhor também…
LB: Eu não vou…

XY: Virá! Virá! Cedo ou tarde todos acabam cedendo à Realidade. (Para Hitler) Vê, vê? É outra luz agora, não é? Mais nítido tudo. Tudo! São poucos os que chegam a este ponto tão depressa! Está de parabéns! De parabéns! Mas o senhor pode subir muito mais! Muito mais! Olhar do alto! Ter milhões a seus pés! Pense nisso! Sinta! Feche os olhos e respire fundo. Isso! Isso!
AH: (De olhos fechados): Sim, eu pressinto, pressinto o que virá… Uma nova Realidade que apenas os cegos e os que trazem a alma manchada de culpa não poderão ver. Sim! Sim! Eu sinto! Eu sinto!
LB: Você ficou maluco de vez…
AH (Olhando de olhos fechados para Buñuel): Louco? Agora que todas as minhas expectativas se confirmam você ousa me chamar de louco? Eu disse a você que eu precisava vir. Eu disse a você que o esperava havia uma eternidade.
(Encarando, de olhos fechados, Buñuel bem nos olhos) Mesmo quando você duvidava, eu continuava crendo. Lá, no âmago, eu acreditava que eles me esperavam. Loucura… É tudo que sabe dizer? Loucura?!
(Abre os olhos) Será que você não vê que esta é a Realidade?
LB: Aqui eu só vejo Dor!

AH: Porque você está olhando daí, ora bolas! Suba e veja daqui! Daqui o que eu vejo é a Roda Inexorável da Existência, a purgação milenar de todos os carmas.
LB: Não vou subir.
AH: Venha! Venha! Daí você só vê a face cruel da Realidade…
XY: Venha! Venha! Sente-se ao lado da Beleza!
LB: Não!
XY: Ele não sente. Não sente… Não é como você!
AH: É uma pena. Uma pena. Você, a quem aguardei como a um filho querido e a quem acolhi como o Messias, aquele que me anunciaria, o meu arauto e o meu guia. Agora, no instante final da sagração da minha Glória, você se recusa a vir sentar-se ao meu lado. Mas, ainda assim, sou-lhe grato, eternamente grato. Se não quer ficar, muito bem. Pode ir! Vá! Vá! Sua missão está cumprida.
LB: Vá? Como assim, vá? Nós estamos juntos nesta história.
AH: Esta já é outra história, meu caro. Será que você não percebe que tudo mudou? (De olhos fechados) Será que você não entende que eu estou vendo

tudo com outros olhos agora? Olhe à sua volta: tudo mudou. Aquela história acabou. Daqui onde estou agora, eu posso lhe dizer com toda a segurança: isto é a Vida. E a Vida é uma luta!
Mais uma vez, lhe estendo a mão. (Ele a estende, mas a recolhe rapidamente) Mas você a recusa! Não quer! Eu sei que não quer! Não quer! (Abre os olhos) Porque você não se contenta em me preceder. Não, não… Você quer um destino ainda mais grandioso. Você quer o meu destino! Não contente em ter ouvido o chamado, você aspira ser Eu! Você quer ser Um comigo! Mas eu perdoo você. Devia mandar quebrar suas patas para que você rastejasse, mas prefiro que você vá, que siga seu destino sem sentido. Vá! Você nada tem a ver com a Realidade. Adeus.
Hitler parte junto com Xy e a Realidade. Todos saem do palco. Buñuel fica sozinho. As luzes se apagam. Só um fraco foco de luz sobre Buñuel permanece.
LB: Nunca estive tão só. Antes, havia aquele telefone tocando. Eu ouvia – e essa esperança me bastava. Quando fui atender, o telefone parou. Quando deixei de crer, ele voltou a tocar. E, quando finalmente atendi, era o Silêncio. Então uma Realidade tão horrenda quanto o Inferno veio até mim e de repente quando me dou conta estou só. Só como nunca estive. Sozinho, na escuridão e no silêncio.

Focos de luz vão se acendendo e, sob cada um, há um imóvel Pensador de Rodin nu com uma máscara contra gases. São muitos e se distribuem sobre pedestais como estátuas em um jardim. Buñuel se dá conta das estátuas. Levanta-se e passeia entre elas, examinando-as.
LB: Não se ouve o que eles dizem. (Limpando as lentes das máscaras) Não posso ver seus olhos. (Encosta o ouvido no bocal onde se supõe que eles respirariam).
Ele se cala, mas a voz dele continua em off.
LB (off): Eles escaparam da Realidade, mas a que preço. Gênios para si mesmos sonhando…
Buñuel volta para seu lugar. Tudo se apaga. Resta apenas uma escassa luz sobre ele.
LB: Estou cansado… “Vi que as coisas quando buscam seu rumo, encontram seu vazio.” ** E é só… Tenho sono, muito sono…
Buñuel deita-se e dorme, encolhido no palco vazio. Entra outro Buñuel que se aproxima do corpo que dorme. O segundo Buñuel deita-se ao lado
** “Eh visto que las cosas quando buscan su rumo, encontran su vacio”, Frederico Garcia Lorca, “Um poeta em NY”.

do primeiro e o primeiro Buñuel se levanta, num movimento sincronizado. Levanta-se e observa um monge que se aproxima lentamente todo coberto em sua roupa característica. O monge pára. Buñuel sente o irresistível ímpeto de lhe baixar o capuz. Revela-se o rosto falsamente feminino e profusamente maquiado de um travesti.
MONGE: Tudo é possível.
Em seguida ele abre a túnica e se mostra nu, os seios de silicone e o pênis imenso e caído, como na carta 15 do Tarot. Então, ele sai, se ajeitando, suspendendo um pouco a túnica e a amarrando com o cinto com estudado desleixo, como se fosse um robe, e só então reparamos que ela usa enormes sandálias de salto.
Silêncio.
Um bloco de carnaval entra no palco, foliões fantasiados se misturam a com sua fanfarra e suas figuras de circo: malabaristas, engolidores de espada, cuspidores de fogo, anões, palhaços, domadores. O bloco passa. Resta uma moça em cena.
LB: Você não vai com eles?
LILI: Não. Meu nome é Liberdade. E o seu?
LB: Meu nome é Luiz…

Ela dá saltos de ginasta pelo palco.
LB: Você é tão linda, Liberdade!
LILI: Você me deseja?
LB: Muito…
LILI: Pode imaginar minha bocetinha sem pêlos… Meu cuzinho, rugoso e róseo… Meus peitinhos duros… Pode imaginar? Eu ainda toda fruto. Impúbere e pura, deleitosa e pronta, recendendo a flor e mel de tão úmida…
LB: Osculetor me oris sui cum mellora sum ubera tua vino. (Buñuel segue rescitando o Cântico dos Cânticos em latim).
LILI: Pobre, Don Luiz… Posso ver o seu desejo. Mas onde está sua inocência?
Ela se afasta de Buñuel.
LB: Liberdade! Liberdade!
LILI: Adorar ou violar? É só isso que sabe o seu desejo, Don Luiz?
Entra uma anã.

ANÃ: Não há como se prevenir contra o Abominável.
Entra um homem-tronco correndo pelo palco num carrinho de rolimã.
HOMEM-TRONCO: Tudo é bom!
ANÃ: O medo é o pai da tirania.
HOMEM-TRONCO: Tudo é bom!
A anã se aproxima de Buñuel.
ANÃ: Feche os olhos, Don Luiz… (Buñuel fecha os olhos) Imagine… De quem são estas mãos, Don Luiz?
A anã lhe acaricia o pau.
ANÃ: E está voz?
Outra voz em off fala e a anã mexe apenas move os lábios, como se estivesse sendo dublada pela voz.
VOZ: Estas mãos… Esta voz… De quem é esta boca?

De costas para a platéia, a anã, sem nem precisar se ajoelhar, parece fazer sexo oral em Buñuel. Uma senhora surge sentada numa cadeira de rodas. A voz em off que falava pela anã é a dela. Ela gira em volta de Buñuel e a anã na cadeira de rodas.
A SENHORA: Você é meu filho? Não! Você não é meu filho. Mas se parece tanto com ele… Você conhece meu filho? Fale-me do meu filho… Como ele está? Está bem? Fico tão preocupada… Seu rosto… Você se parece com ele? Sabe, eu às vezes não me lembro de meu filho… Mas você se parece tanto com ele… São amigos? Conte-me…
Liberdade passa esvoaçante pelo palco. A anã, o homem-tronco e a senhora na cadeira de rodas evoluem pelo palco antes de sair.
LB: Lili?! Lili?
Um anjo cai do alto e fica suspenso sobre o palco, com suas asas imensas.
O ANJO: O Acaso é a caligrafia de Deus.
LB: Lili! Lili!

LILI: Posso ver o seu desejo. Mas onde está sua inocência?
Buñuel corre para ela. Ela foge. É como se brincassem de pique-esconde. Finalmente, quando Buñuel pensa que a irá encontrar escondida em um canto qualquer, em seu lugar ele encontra uma bicicleta. Ao fundo, projetam-se as imagens de uma longa estrada, da Via Láctea, da espuma girante de um café expresso, como em “A Chinesa”, de Godard. Buster Keaton surge, ao fundo, sério. Buñuel cai na gargalhada e sua gargalhada contagia Buster Keaton. Buster Keaton ri. Cai o pano.

FIM

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** “Eh visto que las cosas quando buscan su rumo, encontran su vacio”, Frederico Garcia Lorca, “Um poeta em NY”.

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