Retrato de época


Finalmente, assisti em DVD “Closer” (Perto demais), de Mike Nichols. Não o tinha visto no cinema e minha primeira surpresa foi descobrir que o diretor ainda está vivo e em forma. Dele vi e gostei “Quem tem medo de Virgínia Wolf?”, seu filme de estréia, “Ardil-22” (Catch-22) e “Lobo” (Wolf). Estou até hoje louco para ver “Ânsia de amar” (Carnal Knowledge) e “A primeira noite de um homem” (The Graduate). Todos, exceção talvez de “Ardil-22”, poderiam se enquadrar no gênero “crítica de costumes”. “Closer” não escapa à classificação.

A compaixão que o diretor demonstra por seus personagens não deixa que eles decaiam na caricatura, épica ou cômica – sim, leitor, a compaixão humaniza. No entanto, Nichols não faz mais nenhuma concessão à geração dos seus netos. Mostra-os prisioneiros de uma anti-educação sentimental, baseada numa espontaneidade neoromântica primária, porque pretensamente natural e destituída de travas e repressões, que os condena a imaturidade afetiva e sexual que beira a perversão, empanturrados de freudismo para as massas.

Sem valores, não há sentido: afunda-se num relativismo onde a vontade caprichosa, travestida de desejo, faz da obsessão um arremedo de norma, único freio para a lassidão sem objeto.

Todos os personagens, literalmente, vivem “do sexo” e “para o sexo”: Dan escreve um livro supostamente erótico; Alice é uma stripper; Ann quer estetizar a dor em suas fotos, projeto por definição sadomasoquista; Larry, ao contrário, se autodefine como troglodita e faz questão de enfatizar sua brutalidade e priapismo.

A superficialidade é simbolizada pela profissão escolhida para cada um: o dermatologista e a fotógrafa trabalham obviamente o epidérmico, a superfície. A stripper é uma imagem tridimensional, holográfica, que pode ser vista, mas não tocada. O escritor é um fantasma duplo que se apropria da história alheia, seja como editor de obituários, seja como narrador das aventuras eróticas da namorada.

O outro, aliás, não vale senão como objeto da competição sexual a que se dedicam homens e mulheres, numa mal-disfarçada tensão homossexual não-consumada – a não ser virtualmente, no caso dos homens, numa cena crucial e hilariante. Nada a estranhar, se todos são desesperadamente auto-referentes.

Lembrei de “Ligações Perigosas”. “Closer” é um “Ligações Perigosas” proletário, onde a gratuidade de todos os atos é temperada por doses maciças de emocionalismo trash: o sofrimento é necessário para legitimar a falta de sentido.

As tiradinhas espirituosas, no melhor estilo “roteiro americano típico”, denotam certa “vivacidade intelectual” que uma formiguinha rodriguiana atravessaria com água pelas canelas. E as coincidências, todas plausíveis, que amarram a história é o que lhes dá substância: claro, personagens vazios e à deriva só podem mesmo ter suas vidas tocadas pelo acaso.

A deliberada mistura de superficialidade e sentimentalismo vulgar que Nichols imprime ao filme constrói um belo quadro da cultura ocidental neste início de século 21, onde opulência econômica contrasta com indigência intelectual e emocional.

Nichols, cujo domínio da narrativa cinematográfica é evidente, faz um clássico filme americano, perfeito em todos os fundamentos: direção, fotografia, montagem, roteiro, cenografia, figurino, trilha.

O casting, no entanto, merece um comentário à parte, pela beleza e o charme dos atores, perfeitos nos papéis. A vaga homossexualidade de Jude Law, ambíguo até no nome, a quase boçalidade de Clive Owen, a exuberância sexual de Natalie Portman e a patetice séria de Julia Roberts se elevam à condição de quase-arquétipos de uma cultura em decadência: o que virá em seguida é uma incógnita.

Do meio-campo

“Eu nunca fiz um gol, sabia? Acho que eu sou o único brasileiro que nunca fez um gol. Há muito tempo, eu quase fiz um, sim. Foi logo na primeira vez que eu joguei num campo grande, de terra batida. Jogo de campeonato, onze pra cada lado, de camisa e tudo, o sonho de todo moleque.

Eu entrei no meio da partida e logo no primeiro lance recebi a bola no meio-campo, quase na ponta esquerda. Até hoje me lembro da sensação de desamparo que senti com aquela bola nos pés, meus olhos percorrendo rápida e minuciosamente todo o campo, imenso como a solidão que eu sentia sem saber o que fazer com a bola. Os gritos repercutiam cada vez mais longínquos em meus ouvidos, meu coração se contraindo, contraindo e junto com ele o tempo até que só restava uma urgência prestes a implodir o mundo.

Era preciso fazer alguma coisa! Então eu chutei. Chutei do meio-campo em direção ao gol e senti que naquele exato instante o silêncio e a imobilidade baixaram sobre o campo e todos os olhos se grudaram na bola em sua trajetória caprichosa. Ela subiu e foi descrevendo uma curva lenta em direção ao gol – tudo tão lento como se durasse até hoje – descendo, descendo até bater no ângulo onde a trave e o travessão se encontram, rompendo num estrondo o fantasmagórico transe que congelara a todos. Seguiu-se um “uh!” que misturava o alívio de uns e o descontentamento de outros e imediatamente reparei que o técnico do meu time gesticulava com raiva para que eu, que mal acabara de entrar, saísse de campo enquanto alguns companheiros já iam me empurrando para fora.

Levei uns segundos que até hoje me doem para entender o que acontecera: eu quase fizera um belíssimo gol… Contra! Isso mesmo, eu chutei a bola na direção errada do campo! Nunca mais me deixaram jogar e eu acabei virando goleiro.

Até que outro dia, me vi contando cheio de detalhes um gol que acabara de fazer. Eu cortara um passe do time adversário na esquerda, na altura do meio-campo. Driblei o lateral que veio na cobertura, passei a bola para um companheiro e continuei correndo, fechando em diagonal; quase não acreditei quando gritei “Dá!” e recebi de volta no meio de dois zagueiros; protegi a bola, ganhei dos dois na corrida e chutei de canhota, na saída do goleiro. Um golaço! Golaço! Eu gritava e pulava como se tivesse feito o gol mais bonito da história, no último minuto de uma final de Copa.

Sinto o sangue ferver dentro de mim e me dá uma vontade de chorar de alegria só de contar como eu contava “Foi meu primeiro gol!” e então de repente me veio a dúvida se eu tinha mesmo feito aquele gol ou se tudo não passara de um sonho. Enquanto ponderava, me dei conta de que, se o gol fosse um sonho, o mais certo seria que também naquele instante eu estivesse sonhando. Sim, era isso! Tudo não passava de um sonho dentro de um sonho e a dor que senti foi tão forte que acordei no meio da noite fria com uma tristeza tão fundamente enraizada no coração que nem chorar eu chorava.

Sim, eu sonhara aquele gol tão bonito. Eu não fizera, nem faria gol nenhum porque nem futebol eu jogo mais. Eu ainda era e continuaria sendo o único brasileiro que nunca fez um gol na vida. Porque você, claro, você já fez gol, não fez? Claro, todo mundo já fez…”

Saudação a maio

Enfim, meu maio tão amado está de volta, com suas manhãs luminosas e suas noites límpidas. De manhã, a brisa sopra do sul e um sol que doura sem queimar reina preguiçoso sobre praias vazias, de águas calmas e cálidas. As noites não são menos belas, com seu céu de veludo cintilante de estrelas.

Eis o quadro desses dias que espero o ano todo. Torno-me um turista em minha própria cidade e redescubro a mim e ao mundo como novidade. Se Deus me concedesse, minha eternidade seria em maio. Porque maio é o melhor mês do ano em qualquer lugar do planeta.

Mas, enquanto elaborava a crônica, minha saudação anual a maio, eis que o tempo, mais ágil do que eu, muda de repente e uma frente fria usurpa os céus de maio com suas hostes cinzentas de nuvens carregadas de chuva. Que fazer, leitor, se ainda ontem era maio e hoje me amanhece junho?

Chove. Chove copiosamente, a quase me desmentir a crônica. Chove desde muito cedo sem parar. Chove e faz frio. A previsão é que volte a ser maio amanhã ou depois. Tomara. Esta chuva inesperada é de uma deselegância revoltante.

Neste exato instante, um embate de ventos contrários de sul e norte decide no alto dos céus se haverá maio – e quando. Importa pouco: mesmo quando começa sonsamente em abril ou junho o invade com o inverno antes do tempo contado nos calendários, maio é um estado de espírito, um modo de ser feliz. Calma alegria, discreta exuberância, um tanto de primavera, um tanto de outono, eis a receita de ser maio. E isso, quando se inscreve na alma da gente, não há vento que apague. Por isso, tenho fé: logo será de novo maio.

* * *

Na edição de segunda-feira passada, só a Tribuna saiu com manchete verdadeiramente jornalística: “Juiz ajuda e Fla leva o título” (Eu ainda seria mais enfático: “Juiz erra e dá campeonato ao Flamengo”).
Todos os outros jornais cariocas escolheram manchetes óbvias, feitas para agradar à torcida rubro-negra. Escolheram o comércio e não a informação. Uma vergonha. Começa-se acreditando que não existe isenção e a verdade é relativa e se acaba assim, cego como o mais relés torcedor ou mero vendedor travestido de jornalista.

* * *

Foi a segunda vez que vi o Botafogo perder um campeonato aos 44 minutos do segundo tempo por conta de erro do juiz. A primeira foi em 1971… Coincidências assim são das tais coisas que só acontecem com o Botafogo.

Juiz erra e dá campeonato ao Flamengo

Essa deveria ser a manchete de todos os jornais de hoje, segunda-feira.
Aos 45 minutos do segundo tempo, o juiz anulou um gol legítimo do Botofogo e ainda expulsou Dodô, o artilheiro do time, por ter completado a jogada.
O erro foi clamoroso. O jogador estava a mais ou menos um metro dos dois marcadores quando o lançamento foi feito. Como os dois zagueiros estavam em linha, bastou um pouco de velocidade e sincronia para Dodô ultrapassá-los e ficar de cara para o gol.

Enfim, a decisão errada do juiz decidiu o jogo e o campeonato.

Essa era, portanto, a informação relevante.

O sonho dos mortos

Contemplava o entardecer em Copacabana do terraço do palácio que herdara, suspenso no topo do prédio mais alto da avenida em frente à praia. Céu e mar pareciam um único ser imenso feito de uma infinidade de partículas de azul, distintas umas das outras por fugazes nuances de tom.

Não havia nuvens, mas a brisa vinda do leste espalhava uma névoa rala que talvez contribuísse para a sutileza dos matizes, antes que o azul mais escuro do mar tragasse o céu e a noite finalmente se fizesse, abrupta e igual.

Preferia a noite. Tamanha beleza o deixava ainda mais triste. Olhou sua pele, muito branca e fina: as mãos macias quase se confundiam com o mármore do parapeito onde se debruçava. Não tinha par no mundo com nada que tivesse vida, porque tudo gozava de uma mobilidade que ele aprendera a temer.

Sentia-se prisioneiro de um sonho que não era seu. “Como se libertar de um sonho alheio?”, ele se perguntou enquanto avaliava a profundidade do abismo aberto diante dele, de um azul que se adensava mais e mais. Sabia a resposta, tanta vezes elaborada, minuciosamente, noite após noite. “Não há como se acordar de um sonho que não nos pertence.” Mas os que sonhavam esse sonho, ele sabia, jamais despertariam.

Lá embaixo, os faróis dos carros desfiavam o fio de ouro desbotado de seu ir e vir monótono e anônimo. Seria tarde demais para a vida? Sempre lhe pareceu que sim. A solidão o alcançara muito cedo; e com ela, a amargura de não se achar disposto. “Com o tempo acabamos por nos tornar aquilo que mais temíamos ser”, pensou para concluir, cheio de ironia, que os mortos não morrem: sonham. E como dos mortos não se espera que despertem, o sonho deles se confunde com a vida daqueles que aprisionam. “Como escapar do sonho de um morto?”. Quantas vezes rira, em sua secreta insônia, desses tortuosos raciocínios? Quantas vezes ainda riria?

Nada tinha de seu. Era como um pássaro preso numa gaiola tão grande que talvez nem tivesse grades: se único consolo era que, se saltasse, tinha certeza de que não saberia voar. Havia então ao menos uma resposta.

“O jantar está na mesa.” – A governanta anunciou com sua voz metálica carregada de desprezo. Detestava comer àquela hora, pensou, resignado.

Obrigado!

“Se eu pudesse deixar algum presente a você,
deixaria aceso o sentimento de amor à vida dos seres humanos.
A consciência de aprender tudo o que nos foi ensinado pelo tempo afora.
Lembraria os erros que foram cometidos, como sinais para que não mais se repetissem.
A capacidade de escolher novos rumos.
Deixaria para você, se pudesse, o respeito aquilo que é indispensável:
alem do pão, o trabalho e a ação.
E, quando tudo mais faltasse, para você eu deixaria, se pudesse, um segredo.
O de buscar no interior de si mesmo a resposta para encontrar a saída.”

Mahatma Ghandi

A vontade e o caos

A primeira vez que o vi foi há 13 anos, na época em que meu pai morreu e eu passei a ser correntista de um determinado banco. Quando ele entrava na agência sua presença era anunciada por um estardalhaço de metais retinindo ao ritmo marcado de suas passadas lentas e pesadas. O rapaz sofria creio que de pólio e usava para se manter de pé botas ortopédicas de solado alto e intrincadas armações de aço.

Os braços aparentemente tensos da concentração exigida pela marcha às vezes explodiam em movimentos descoordenados e o rosto se contraía em caretas cômicas porque não denotavam dor. Mas em seus olhos ardia uma fúria incompreensível aos que fingiam ignorá-lo para não transmitir a impressão de estranheza e embaraço que de fato sentíamos ao ver a tarefa ordinária de pagar uma conta elevar-se de repente à condição monumental do confronto entre o homem e seu destino.

A alegria e o orgulho que eu via naquele olhar furioso me contagiavam e encontrá-lo passou a me fazer um bem enorme. Porque a cada vez que o via, em ruas ou lojas, ele estava melhor, sempre melhor.

Não sei quanto tempo demorou até o dia que o vi já sem as botas ortopédicas. A movimentação frenética do corpo ainda era assustadora, embaraçosa ou comovente – segundo a generosidade de cada um – mas agora o embate entre a vontade e o caos insubmisso que nos habita acontecia livre, sem contrapesos e amarras metálicas.

Aos poucos, num tempo contado espaçadamente em anos, ele foi ganhando controle sobre o corpo até que os espasmos musculares mais pareciam tiques nervosos. Ele, enfim, dominara o mal, o enjaulara e lhe impusera uma forma humana, previsível.

Enquanto eu às vezes me comprazo entre a revolta e a autopiedade, me eximindo de toda iniciativa que me exponha ao risco, aquele homem aceitara como um dom a solidão que era sua e sobre os escombros de um corpo ergueu uma alma; tão grande, que vê-lo era para mim me nutrir. Não sei o seu nome, nunca nos falamos; mas devo também a ele um tanto do que de bom há em mim.

Fazia tempo que não nos víamos. Semana passada, eu vinha de bicicleta pela praia de Botafogo quando, de repente, cruzo com ele… de bicicleta! Sim, sim! De bicicleta! Isso significa que o domínio que ele alcançou sobre o corpo é agora absoluto!
Foi tudo muito rápido, mas tenho a impressão que ele me reconheceu e que seus olhos, agora despidos de toda fúria, me diziam: “Eu venci.”