Chuva

Acordei com a chuva. Não resisti: fui para a janela ouvi-la mais do que vê-la, sentir sua umidade na pele, os ínfimos respingos que sobre mim se salpicavam num dinâmico e discretíssimo do-in. Via os relâmpagos e calculava a distância e direção das nuvens mais carregadas pelos trovões que logo se seguiam. Era como se eu estivesse no mar.

Se eu viajasse de novo queria ir por mar.

Fui ficando na janela, distraído e atento – “como um rádio”, me ocorreu a analogia meio sem pé nem cabeça… Gosto de janelas. Gosto de assistir ao movimento aleatório do mundo… Ouça! Acabo de capturar o som distante de um rebocador abrindo caminho para algum navio na baía nevoenta! De novo! Sim, é um rebocador. Ele faz soar sua sirene como um lamento de baleia para avisar aos barcos menores que se afastem do seu caminho… Viajei muito de navio quando estive nas ilhas gregas, há 40 anos. Eram viagens curtas, mas que às vezes varavam a noite, o convés repleto de uma garotada muito louca e feliz. Como eu gostava daquilo…

Cessou a chuva e com ela meus devaneios. Perdi o sono. Vou fazer um café e trabalhar no úmido silêncio deste resto de noite sem estrelas.

Minha mãe ucraniana

Antonio Caetano aos 7 anos e sua mãe ucraniana. Foto de Fernando Pamplona, 1965, Teatro Municipal RJ, Conjunto Emérito Estatal de Danças da Ucrânia

Eu tenho uma mãe ucraniana. Ela foi minha mãe de 10 a 16 de maio de 1965, e me deu à luz como herdeiro de um cossaco morto no campo de batalha na liderança de nosso povo. Onde estará hoje minha mãe ucraniana quando nosso povo precisa tanto de seus filhos? Sempre quis muito reencontrá-la. Tão jovem, tão linda, tão vigorosa. Todas as noites, ao fim do nosso esquete, ela me cobria de beijos (na boca até!), feliz com o nosso sucesso. Lembro de tudo: das imagens, dos cheiros, do suor, dos sorrisos, da alegria.

Onde estarão agora os netos e bisnetos de minha mãe? E meus irmãos e sobrinhos? De arma em punho como os cassacos que celebrávamos aos saltos no palco do teatro lotado?

Ontem li sobre o Fantasma de Kiev, um piloto mitológico que já teria abatido quase uma dezena de aviões russos e ninguém sabe quem é. Ao ler, entendi imediatamente quem fui naquelas longínquas noites de maio; quem emergia da terra para apertar contra o peito o gorro e a espada (como pesava!) do pai morto: o fantasma de Kiev, transfiguração humanizada do arcanjo São Miguel, padroeiro da Ucrânia.

Estou velho demais para guerra. Mas queria saber de minha mãe. Minha mãe ucraniana. Rezo por ela e por nosso povo.


Na foto, sou eu e minha mãe ucraniana fotografados pelo diretor artístico do Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1965, o genial Fernando Pamplona. Ela era bailarina do Conjunto Emérito Estatal de Danças da Ucrânia.

Retirar-se

“A Montanha sob o Céu: a imagem do retirar-se. O que é superior domina não pelo conflito, mas por manter a distância correta de cada coisa” diz o hexagrama que o vento nordeste desenha no céu, nítido e fugaz, enquanto rezo na janela por mim, por todos os mortos, pelos meus amados, vivos e mortos, e por cada vizinho que dorme por detrás de cada janela escura. Rezo a Deus que lhes acenda a fé durante o sono num lampejo de sua Glória e então para sempre acordarão outros sem saber. Rezo que a conversão lhes seja fácil e venha em sonho.

Rezo. E cada vez gosto mais de rezar.

Tenho minhas orações particulares e tenho o Rosário com seus terços de Mistérios. Gosto de mergulhar longamente em cada Mistério antes de rezar as orações de praxe e assim em sucessão até o Salve Regina que lhes coroa o fim. Tanta coisa me vem enquanto rezo, grãoszinhos epifânicos que me rejubila sentir e deixar passar, tão certo estou que não preciso guardá-los porque eles se lembrarão de mim na hora certa: certos pensamentos são como anjos. Como são anjos as orações. Deve ser por isso que gosto de rezar na janela…

“O caminho se revela nas pequenas coisas, nos gestos e cuidados mais simples, como é a tarefa de regar regularmente as plantas para que floresçam e frutifiquem quando chegar a hora.”

E o Espírito de Deus pairava sobre as águas

“E o Espirito de Deus pairava sobre as águas…”

São 4:30 da manhã. O Espirito de Deus paira sobre o silêncio e logo se fará Luz. Paira sobre a vida imersa nas profundezas de um sono sem sonhos, reparador e imemorial nada, as trevas que a Luz iminente tornará o solo fértil da imaginação que nos anima: que surpresas o novo dia guarda a cada um que agora dorme?

“Enviai, Senhor o Vosso Espirito e tudo será recriado. E renovareis a face da Terra.”

* * *

Fez-se a Luz já e os biguás e fragatas começam a acariciar o ar com sua caligrafia: leio-os? Nem sei, mas lhes atribuo a brisa inesperadamente fresca que me envolve num abraço de anjo. É verão, e um abraço desses não é pouca coisa – só quem é carioca sabe. Não importa. Por dentro exulto e escrevo como se rezasse apenas para evitar que eu mesmo voe. Sabe-se lá o que diriam meus vizinhos…

Dos muitos matizes

Desfalece o dia em matizes de azul
ou será a noite que aos poucos se acende?
A quem pertence tamanha intensidade?
Morte e vida, início e fim,
tudo em mim às vezes se confunde
e me acalma uma espécie de tristeza
que se ampara no que lá fora sinaliza
mundo e Deus entrelaçados,
mistério inexplicável de tão simples,
jugo leve de quem espera
na fé do que não sabe,
mas pressente
nos azuis do céu
e na alma matizada.

Do que Deus concede aos amantes

Dia claro e a Lua ainda alta,
como se a manhã, usurpada, agora fosse sua –
calma soberana muito branca e luminosa.

E o Sol, contente em adiar-se,
espalha uma luz ainda mais rubra sobre o mundo
como se consentisse com tamanha petulância.

Sabem os dois que à Lua pertence
o veludo salpicado de brilhantes onde repousa.
E o Sol faz labutar toda a Terra sob o ritmo árduo do Céu
que reflete o Mar, servo da Lua e seus humores.

Mas hoje, só por hoje, concedem-se esse longo instante
A que, por direito, têm todos os amantes
De esquecer-se
Sendo um só
E cada um
o outro.

Meus vizinhos de janela

Cultivo meus vizinhos de janela como se fossem plantas minhas. Eu os cultivo, mas sigo a regra simples da boa rega: não os encharco de olhares invasivos. Apenas cuido deles com o mesmo olhar úmido de afeto que dedico às minhas plantas.

Não são muitos esses vizinhos porque a maioria se oculta por trás de grossas cortinas. Não os condeno: são plantas de sombra. Mas, como eu, há os que precisam de luz, de ar, de ver passar o tempo em brancas nuvens na brisa sempre incerta. Eu os admiro porque não temem o olhar dos outros – não se exibem, sedutores; apenas estão lá, concentrados em ser e crescer, dados e alheios, isentos de malícia.

Cultivo meus vizinhos pela mesma razão por que cultivo plantas: gosto de ver o curso da vida em sua discreta e obstinada singeleza. Preciso disso, sinto falta disso.

Para alguns até invento nome. Há dois irmãos, uma moça e um rapaz, ele o mais novo. Cada um tem seu quarto e passam os dois boa parte do tempo acredito que estudando, lendo e pesquisando na internet. A ela chamo de Rosa porque parece uma pessoa muito determinada, capaz de ficar horas no computador quase sem se mover. O rapaz, ao contrário, passa mais tempo na cama lendo, mas se mexe muito. Por isso o chamo de Gerúndio, que parece nome de flor e é o tempo verbal do que não pára quieto.

Há uma senhorinha que mora sozinha no último andar, num quarto e sala com varanda onde ela cultiva umas poucas plantas, mas entre elas… um girassol! Ele é alta, negra, seca, já um tanto curvada pelo tempo. Todo dia, no cair da noite, ela vai para a varanda e reza. Eu a chamo de Dona Flor de Pedra, tão antiga ela é, tão primordial e arcaica, tão forte e frágil como a própria vida.

Há um senhor que é passarinheiro e todos os dias, bem cedo, põe as gaiolas dos seus passarinhos na janela pra tomar sol. Moram com ele a filha e dois netos, além de uma empregada. Não lhes dei nomes porque pouco os vejo, mas às vezes à noite me calha de chegar na janela e vê-los à mesa jantando. Há nisso para mim uma graça comovente quase pré-histórica.

Ah! Lembrei agora de um velhinho de cabeça branca que todos os dias no fim da tarde vai pra janela assobiar pros cachorros da minha vizinha do térreo até fazê-los latir. Nem sempre dá certo, mas ele se diverte assim mesmo. É muito engraçado! Ele não tem ainda um nome, mas como parece uma coruja visto daqui, com seu nariz pequeno e adunco, vou chamá-lo de Seu Coruja… Não é nome de planta, mas é tão a cara dele… Que seja!

Enfim, há ainda os que não vejo, apenas ouço. Mas desses falo outro dia.

A espessura da realidade

Acusam-me de fugir da realidade e refugiar-me no sonho. Penso que não se pode considerar a realidade como um panorama de superfície única, pois uma paisagem tem várias camadas, e a mais profunda – aquela que somente a linguagem poética pode revelar – não é a menos real.

Quero ir além da epiderme das coisas. Chamam a isso “gosto pelo mistério”. Aceito de bom grado a expressão, com a condição de escrever mistério com M maiúsculo. Porque não me refiro ao mistério, cultuado por alguns, que não passa de um sucedâneo poético com que querem salpicar a realidade. Para mim, o Mistério é o mistério do homem, as grandes linhas irracionais de sua vida espiritual: o amor, a salvação, a redenção, a encarnação…

No centro dessas camadas sucessivas está Deus que, para mim, é a chave dos mistérios.
Creio que Jesus é não somente o maior personagem da História da Humanidade, mas que ele continua a sobreviver em todo aquele que se sacrifica pelo seu próximo.

Ignoro os dogmas católicos. Sou, talvez, um herege. Meu cristianismo é bruto. Não frequento os sacramentos. Mas penso que a oração poderia ser considerada como uma ginástica que nos aproxima cada vez mais do sobrenatural. Pratiquei-a antigamente. Agora, só sei rezar na hora do medo e da tristeza. É preciso saber rezar na hora da alegria.

Entrevi o caminho da salvação. Antes, a religião era, para mim, uma simples suspeição da alma. Um dia, encontrei um anjo que me estendeu a mão. Segui-o. Mas, depois de ter dado alguns passos, deixei-o e voltei atrás. Ele, porém, permaneceu em pé, no mesmo lugar, esperando-me. Eu o revejo nos momentos de sofrimento, cada vez um pouco mais envolto em brumas. Eu lhe digo: “espera”, “espera”, como eu o faço com qualquer um. Receio que, um dia, eu o chame e não mais o possa encontrar.

Mais do que Jesus, o anjo foi sempre aquele que me despertou do meu torpor espiritual.
Quando eu era criança, ele era a encarnação de um mundo fantástico. Depois, ele se tornou a encarnação de uma urgência moral.


Esse texto é atribuído a Federico Fellini.

É tão bonito que me parece plausível.

Deixei para revelar o autor no fim para que o leitor provasse da sua beleza sem se deixar contaminar pela autoria. Busquei o original em italiano ou a versão em inglês ou francês, mas não achei. Talvez não tenha me esforçado o bastante. Dei uma ajeitada na tradução para o português. Troquei “espessura” por “camada” no texto, mas no título usei a palavra “espessura” porque ela denota a soma das camadas – que é, no fundo, do que se trata. Mudei também alguns tempos verbais, cortei alguns pronomes, e um ou dois adjetivos supérfluos. O texto ganhou mais fluidez, sem perda de sentido.

Pensei em rubricar uma frase, mas essa ênfase seria minha e não de Fellini. Por isso, por fidelidade, desisti. A frase é esta: É preciso saber rezar na hora da alegria. A ideia envolve gratidão, mas vai muito além disso. Tem a ver com aquilo que os padres chamam de “amizade com Deus”.