A Interpretação dos Filmes

Todo filme é um sonho. Um “sonho que se sonha junto”, mas cada um o seu. No cinema, claro – onde como no sonho, imóveis, não podemos parar nem retroceder o fluxo da história, e sempre alguma coisa fica para trás, semi-esquecida, enquanto outras se fixam, para sempre: o meu sonho.

Em 1900, Freud publicou sua primeira obra-prima, e um dos pilares do que viria a ser a psicanálise: A Interpretação dos Sonhos.

Cento e vinte e um anos depois, quem escreverá A Interpretação dos Filmes, e sobre ela erguerá uma nova abordagem do método psicanalítico?

Em vez de um sonho, “conte-me um filme que lhe venha a cabeça”. Faça uma lista impensada, quase inconsciente, dos filmes da sua vida. Agora, que tal contá-los como quem recorda sonhos ou cenas remotas da infância? E depois de esmiúçá-los até os limites da memória, por que não, enfim, revê-los? E daí, retirar mais material analítico: aquilo que foi esquecido – ou reprimido, como preferiria Freud – e que agora me veio à tona.

É uma experiencia fascinante. Digo porque tenho percorrido esse caminho e tem me sido revelador: os filmes são “espelhos da alma”.

Tudo começou por acaso. Estava pela enésima vez fazendo uma lista dos “filmes da minha vida”. Dez, quinze, vinte, vinte e cinco… E sempre me ocorria mais um. Então de súbito tive a ideia de numerá-los até cinquenta, colocar os números num saquinho e a cada dia sortear um para ver. Só haveria uma regra: uma vez sorteado, o filme tinha de ser visto obrigatoriamente, a despeito da minha vontade naquele dia: nenhum sonho é voluntário ou escolhido.

Conto para essa experiência com a ajuda inestimável de um aplicativo chamado Stremio, que me permite encontrar na rede mundial de torrents sempre um grupo de pessoas em diferentes partes do mundo assistindo ao mesmo filme que quero ver.

Ver um filme em casa não é uma experiência como no cinema; é uma experiência reflexiva: é possível parar o filme, voltar, rever, ouvir de novo, ler a respeito… Enfim, é como se o filme se tornasse um livro e perdesse aquela aura de precariedade e urgência, de tempo que se esvai, tão própria da experiência cinematográfica.

Aliás, que destino terá essa experiência no futuro? O cinema acabará e só restarão os filmes? Eu tenho pra mim que não. Que o cinema, como os livros de papel seguirá existindo como uma uma experiência estética e existencial própria de nossa civilização e indissociável dela. Aquelas salinhas que nas cidades grandes se notabilizavam por passar filmes quase esquecidos, prevejo, irão ressurgir com toda a força logo-logo, assim que a tecnologia digital alcançar a maturidade suficiente para mimetizar a experiência cinematográfica – aquela coisa da luz que atravessa a escuridão e se projeta na tela – como um sonho.

Tenho me visto nos filmes que sorteio, revisitado sentimentos, esperanças, medos, fantasias, frustrações: “eu sou eu e meus filmes”. É engraçado como eles se juntam em mim para, a partir do que a gente poderia mesmo chamar de a materialização d o”espírito do tempo” – o zeitgeist de que fala a filosofia – formar em mim uma montagem singular que é como uma imagem de mim para mim, filho-puzzle que sou eu mesmo, estranha trindade onde sou o pai, o filho e o espírito do tempo.

E tudo me vem num momento em que um grande e um pequeno e valoroso ciclo da minha vida parecem alcançar seu “perfeito acabamento de flor”. Reconheço no acaso aparente que sorteia os filmes a “caligrafia de Deus”: ler-me é lê-Lo. Eu sou para mim aquilo que Deus quer dizer-me. E eu ouço, estou ouvindo – com os olhos. E os ouvidos. De quem quer entender.

Mais do que nunca, valho-me de um verso de Lorca: “He visto que las cosas cuando buscan su curso, encuentran su vacio”.

Cântico Negro, de José Régio

Reinaldo Azevedo, em um dos seus programas esta semana, leu um poema do escritor português José Régio, a quem eu, na minha ignorância que nunca deixa de me surpreender por sua vastidão e segredos, não conhecia.

Foi um achado! O cara é incrível – como escritor, como ser humano. E, por falar nisso, sim, amigo de Pessoa – que nos seus versos ressoa – ou terá sido o contrário? Pouco importa.

Vale conhecer o Régio (coisa que o verbete do Wikipédia já serve de aperitivo) e, de quebra, o Modernismo português.

Segue o poema “Cântico Negro”:

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
— Sei que não vou por aí!

O último terço

Um dia, hei de ver chegar a morte,
Sem aviso nem surpresa,
E espero que me encontre pronto,
Alma lavada no corpo fatigado.

E venha não em fato negro,
Mas em forma de anjo
Que me conduza, leve,
à Casa onde repouse
No regaço da Luz
Em sua Glória.
Eu enfim eterno
Como sempre fui.

Domingo

“O silêncio cinza da tarde chuvosa”: o cinza do cimento, do amianto, do alumínio, do concreto. Das nuvens, da chuva. Da luz que disso tudo resulta. O silêncio vivo das gotas tamborilando pelos telhados, nos vidros, no chão em tantos tons e intensidades que mais parece jazz, cool jazz, tão distintos e dispersos, e ainda assim, carícia…

É domingo. As nuvens passam lentas. E na tarde tudo descansa – como Deus um dia.

Sinto a imensa solidão de ser tudo isso que ouço e vejo e penso e sinto. Solidário e só, sem dor nem dó, “assisto no que assisto” – truque semântico que nos poupará de muitas frases, leitor.

“Tudo é bom”, me disse Kim um dia citando Glauber.

O bem-te-vi diz quem é ao longe e, no fundo da paisagem, as palmeiras coloniais indicam que isto é a eternidade.

Não há ninguém nas varandas nem nas janelas. Apenas eu debruçado no parapeito faço este exercício de caligrafia. “As nuvens são a caligrafia do vento”, escrevi ontem. Caligrafia: há quanto tempo não me via assim exposto neste espelho: vejo-me na minha letra – e todos que me foram exemplo, desejo, inveja. Sou tantos… Sou todos: sou eu.

A voz, a letra, as palavras que escolho são também eu – e mais essa vista que conheço há 50 anos já – e que muda sem envelhecer.

Tudo sou eu e ainda mais há para ser. Nem na morte cessarei.

Deus é grande e quis ser homem. Talvez isso explique a Criação.

Não sei… Sei que chove e isso é bom. Com certeza.

Pão e Adão

Faz-se pão como Deus fez Adão.

Junto água à farinha e naquele barro acrescento o sopro do fermento, que dá vida à massa. Sovo com carinho, deixo descansar, enformo e levo ao fogo. Pronto. Aos poucos, o aroma dessa combinação de elementos primordiais vai enchendo a casa, ancestralíssimo e trivial. Vê-lo ganhar sua forma final – dourar-se de uma crosta que abraça a massa tornada fofa pelo fogo, tão delicada ao paladar – é também um deleite visual.

Eucarístico, ei-lo sobre a mesa, o pão: carne de Deus a nos convidar para a comunhão. Com Deus ou qualquer um. Porque pão é coisa que se divide – como os nomes que Adão deu de primeiro a cada criatura, uma a uma.

De palavra e pão somos feitos, nos ensina o Pai Nosso que Jesus nos deixou. E é tão fácil fazer pão. Tão fácil dividir. E mais fácil ainda dizer não? Há quem se engane…

Gratidão

Minha primeira reação foi chorar. Chorei muito. Quase a seco, mas de soluçar – porque talvez também as lágrimas vão se acabando com a idade, não sei. Depois, só depois que deixei chorar o menino as suas perdas – porque a cada uma ele sempre chora todas – o homem pôde perceber o quanto deve a ti ser o homem que é. E senti gratidão. Por isso posso te dizer sem dor, sem rancor, sem o que for que não seja amor: eu sempre estarei aqui para o que der e vier.

Amor estragado

O amor que me deram estava estragado e eu comi assim mesmo para não magoar ninguém. Era veneno o amor que me deram. Um veneno que não mata, mas deforma até que no corpo não reste mais lugar para alma alguma: cadáver mecânico sem vontade de inventar-se para além da mímica que chamam “minha vida”, respondo resignadamente nem sim/nem não aos apelos do cotidiano. Apenas sigo indiferente porque é de seguir que se trata. E desse lamentável equívoco semântico faço versos para parecer outro Pessoa. É ridículo. Tão verdadeiramente ridículo que me comove, último traço de humanidade em mim. Autopiedade, chama-se.

Os olhos ardem, úmidos, mas nenhuma lágrima corre. Não haverá lágrimas – efeito lógico do veneno que me serviram como amor. O que procuro? “Felicidade ou morte”, poderia ter sido meu lema no passado em que pensei que drogas poderiam ser o antídoto para o veneno que me deram. E foram. Mas o veneno que chamaram de amor seduziu o próprio antídoto e de novo me vi sozinho com o amor que me deram e é tudo que tenho para repartir agora.

Pobre amor podre que nem sequer se envergonha de cheirar tão mal à vista de todos. Sinto pena do próprio veneno que me mata. Daí concluo que já posso morrer sossegado, certo de ir para o paraíso bom-mocista que premia os que renunciam à alma em troca de um corpo vazio. Um paraíso habitado por ninguém, ninguéns.

* * *

Eu escrevo bem? Isso até impressiona muito. A literatura é uma atividade circense. Mas não há em mim nada a ser genuinamente amado, além da duvidosa habilidade com as palavras. Eu devia me amar mais, alguém certamente me aconselhará. É de se rir… Eu me amo muito. Eu me amo com todo o amor que me deram. E quem mais suportaria esse amor, além de mim? Quem vai querer um amor estragado? Quem pode amorosamente dar a quem ama um amor estragado? Mas é só o que eu tenho para dividir: o amor estragado que me deram e eu comi para não magoar ninguém.

Então deixemos isto de lado… O amor é um maravilhoso equívoco: você ama em mim aquilo que eu não sou, mas você acha que eu poderia ser, sabe-se lá porquê. E eu, se te amo, tento ser este que só você vê, apenas pra te agradar. Eis aí, o milagre do amor – explicado em pouquíssimas palavras. Eu disse que era hábil com as palavras – e quase posso ouvir os aplausos do respeitável público.

Acontece que, como toda mágica, o milagre do amor perde sua graça quando descobrimos o truque. Mas, não se apavore, leitor. Nosso próximo número chama-se “hipnose cotidiana” e você será induzido a esquecer o que acaba de descobrir.


Essa crônica foi publicada em outubro de 2014, na coluna semanal Crônicas de Amor e Perplexidade que mantive no jornal Tribuna da Imprensa de 1999 a 2019.

Pietra

O corpo
escrito em esses
expressa mais
do que esconde
uma tristessa
(assim mesmo, com dois esses!)
tão clarice
em sua essência.

Mas quem escuta?

Sabe-se
sensual,
e às vezes
esfinge-se
obscena.

Pedra plástica,
esculpe-se a si mesma
como se no avesso
interrogasse
a costela
que lhe falta.

Em memória de minha avó

A Morte –
ato exato.
Perfeito acabamento de flor
que te confere outro valor:
terra germinada.

Não há fim, nem começo –
apenas traço que se desdobra no espaço,
história.
(Pois, sem ti, o que seria do eu que serei outros?)

Pequeno ajuste,
nome que se troca:
foi Augusta –
agora é cor,
som,
pura abstração de si
que se entrega ao Tempo,
adiante:
leve Deus que Vai..

Poema explicado

Poema é que nem piada: se a gente explica perde a graça. Mas, prometi à Mônica detalhar o último que escrevi. É que citei Mateus sabendo já da falta de intimidade das pessoas com os Evangelhos. Paradoxalmente, quanto mais culto o sujeito, menos íntimo.

Por coincidência, foi na mesma semana em que rolou na internet o tatibitati periódico sobre a leitura dos clássicos – Machado, como sempre, no centro da tagarelice.

No meu tempo, os eventuais problemas de vocabulário de Machado se resolviam com um dicionário do lado. E, claro, nem todo mundo era capaz de apreciar a elegância, a sutileza e a ironia de Machado. E sempre será assim.

Mas, se é pra falar de clássicos, vamos logo chocar com alguma novidade velha como o Ocidente: o clássico dos clássicos – aquele incontornável, sob pena de não se entender nada da literatura ocidental, da filosofia aos provérbios populares – são os Evangelhos. Já nem digo a Bíblia, que fica para os universitários, mas os quatro evangelistas, aquela zaga inexpugnável: João, Marcos, Lucas e Mateus.

E isso não tem nada a ver com religião, a despeito de Jesus estar mais ou menos no centro das três religiões que nos tocam mais de perto: é Deus encarnado para os cristãos, o maior de todos os profetas depois de Maomé para os islâmicos, e alguém sobre quem é melhor mudar de assunto para os judeus.

A importância que dou aqui aos Evangelhos, repito, é essencialmente literária, no sentido mais profundo do termo. É preciso lê-los para se dar conta do quanto eles impregnam nossa linguagem cotidiana. E quem duvidar que atire a primeira pedra.

Enfim, os Evangelhos deveriam ser lidos logo cedo, numa clave eminentemente literária e depois que cada um seguisse seu caminho segunda sua tradição familiar.

Falei, falei, falei e não expliquei o poema!

Melhor a esta altura repeti-lo. É curtinho:

Mateus, 22, 30; 27, 7

Cemitério de estrangeiros ou forja de anjos:
eis o que é o Mundo, verdade revelada ao custo do Teu sangue.

Liberta-nos saber.
Custa-nos mais ouvir que somos todos irmãos, por consequência.


Entre o poder e o amor, a tentação de ser maior arrasta-nos para baixo a todos – escravos e senhores, escravos senhores de outros escravos, senhores escravos de seus escravos – os pés fincados na história e no tempo, ilusões que confundem com a Providência d’ Esse cujo o coração ainda sangra pelas almas que não vicejam.

Primeiro, a nomenclatura do título. Mateus, todo mundo sabe, faz referência ao Evangelho de Mateus; 22 é o capítulo e 30, o versículo. Como são dois trechos do mesmo Evangelho, o ponto e vírgula os separa, para não ter confusão.

Em Mateus, capítulo 27, versículos 3 a 7, Judas, arrependido e desesperado, tenta ao menos devolver o dinheiro que recebeu para trair Jesus. Os sacerdotes não o aceitam de volta e ele atira as moedas no chão do Templo e sai para enforcar-se. Como aquele dinheiro está envolvido com sangue, ele não pode ser incorporado ao tesouro do Templo. Os sacerdotes decidem então comprar com ele um terreno para lá construir um “cemitério de estrangeiros”.

Não foi a primeira vez que li o trecho, mas foi com uma tristeza profundíssima que pela primeira vez percebi que não há definição mais exata para este mundo: cemitério de estrangeiros. Aquele que não tem fé, vive para morte numa terra que lhe é estranha, incompreensível até.

Divagando nessa ideia tão verdadeira e triste, abri de novo o Evangelho e fui parar no capítulo 22, versículos 23 a 30, onde um bando de saduceus tenta armar uma pegadinha para Jesus: a fim de questionar o sentido da ressurreição, lhe apresentam um paradoxo que desmentiria a doutrina. Na tradição mosaica, se um homem morresse antes de produzir filhos, seu irmão deveria casar com a viúva e dar-lhe filhos. No paradoxo dos saduceus, uma mulher casa sucessivamente com sete irmãos sem que nenhum lhe d? filhos. Na ressurreição, perguntam eles, de quem ela seria esposa?

A resposta de Jesus, como sempre, é desconcertante: no Reino não haverá maridos nem esposas, porque seremos como anjos.

Na mesma hora, a tristeza que se fizera em mim se dissipou: se este mundo, para o que não tem fé, é um cemitério de estrangeiros, para quele que a tem, é uma forja de anjos!

E assim nasceu o poema.