Labirinto

… sonho
que sou teseu
e perdi o fio

no labirinto
(tedioso e tenso)

por onde vago
em imprecisas
repetições:

sempre de volta
ao que parece ser
o mesmo ponto
(mas não exatamente)

sempre contra o tempo
que sei
(sem saber porquê)
cada vez mais
escasso

esqueceu-me
ariadne
ou
esqueci-a
eu?
ou
serei eu
o minotauro?

não há espelhos
nos labirintos
nem nos sonhos

(porque são espelhos
os labirintos
e os sonhos)

?

Dos amigos da rua

Minha primeira preocupação, quando a ideia da quarentena se impôs, foi com os meus amigos da rua. Sei, porque converso com eles, que eles vivem um dia de cada vez.

Alguns conheço pelo nome. O Luciano, por exemplo, é um homem grande, forte, mas doce como criança, que se tornou mendigo talvez por conta de problemas mentais. Ele some às vezes, mas, quando aparece, fica sentado sempre no mesmo lugar, o que é uma característica comum de quem não tem casa.

Uma vez lhe perguntei porque escolhera aquele lugar e ele tentou me explicar que ali, numa determinada hora do dia, descia uma luz do céu que ele não teve palavras para descrever. Em sua ansiedade para me revelar esse segredo essencial de sua existência, ele lutava com as palavras e a própria gramática parecia não dar conta da epifania quase diária que ele experimentava naquele lugar. Eu, que conheço bem essa dificuldade, fiquei comovido com ele partilhá-la comigo.

Jamais vi Luciano pedir. Ele simplesmente fica ali, largado no chão, conjecturando, muito atento à sua vida interior e ao que, externamente, é invisível aos passantes. Mas sempre que lhe dou alguma coisa – dinheiro, comida, bom dia, papo – ele agradece surpreso, como se não esperasse nem precisasse disso.

Outro dos meus prediletos é o Marcelo. Ele fica numa esquina movimentada do Catete tocando reggae e rock, só na voz e violão, sem o artifício nefasto da amplificação sonora. Só por isso mereceria o meu respeito. Ele é um negro retinto, muito magro, curtido de sol e tempo, com uns dreadlocks longos e bem cuidados que lhe dão ares de xamã.

Uma vez, ele me contou que já trabalhara em muitas coisas mais regulares pelo Brasil afora, mas o impulso da arte foi mais forte e, um dia, ele mandou tudo às favas, aceitou a sua sina e foi viver do risco de ser artista. Sempre que posso, especialmente nos dias nublados ou chuvosos, me esforço para salvar seu dia.

Há também o seu Zé Carlos, um senhor muito preto também, pequenino, ágil, e elegantíssimo. Aliás, mais do que isso: fashion, sempre combinando cores e tons fortes na medida, apesar das roupas simples. Ele tem estilo, enfim. Vende plantas aromáticas e medicinais, e produz seus próprios chás, segundo receitas que aprendeu nos livros. Usa um carrinho que lembra aqueles de pipoca, com tudo muito bem organizado e limpo. É um espetáculo visual vê-lo em seu ponto.

Uma vez, fomos juntos ao terreno baldio onde ele guarda suas plantas. O terreno fica nos fundos de uma loja e resultou, presumo, da derrubada promovida pelo Estado para a construção do metrô. Como está longe da rua e cercado por muros altos, ninguém se dá conta de sua existência. Mas seu Zé Carlos tem a chave da porta de metal que dá acesso ao terreno. Para mim, foi como atravessar um portal para outra dimensão, ao mesmo tempo mágica e perigosa, inacessível aos mortais comuns. Parecia esses jardins meio selvagens das fábulas infantis, e descobri, para minha surpresa, que seu Zé Carlos também o usava para cultivar algumas de suas plantas. Incrível…

Enfim, enclausurado voluntariamente há tantos dias seguindo o que me parece um dever cívico, penso nesses companheiros de viagem cotidianos e sinto saudade deles. É bom tê-los para poder lembrá-los e rezo para que estejam bem.

Quarentena

Acordo cedo e vejo amanhecer. Sempre gostei do silêncio que precede o dia e seus afazeres. Mas agora é diferente. Há no ar essa incerteza consubstanciada em nuvens que no céu espelham o peso que sobre nós se abate. A frase mais otimista que ouvimos é que nada mais será como antes. Haverá abraços no futuro? Essa é uma das questões que mais me angustia…

A única rotina que parece inalterada é a dos pássaros e das plantas. Talvez só os pombos sofram de fato com essa escassez de gente e lixo.

Alguém disse que março foi domingo todos os dias. Eu acho que esses dias têm sido dia nenhum: nem sábado, nem domingo, nem segunda… É uma negação de todos os dias, um longo dia sem nome, sem sentido. Nem semana há. Empilham-se as horas e delas passamos direto para os meses: foi-se março, que só foi março até a metade, e agora vem abril que nada será senão um nada por inteiro, segundo dizem.

Para os católicos, tem sido uma quaresma de penitência real: sem missa, sem sacramentos, sem a presença do padre e do rebanho. Tornamo-nos todos monges, monges involuntários dos mosteiros do eu sozinho, irmanados virtual e sobrenaturalmente pela oração e pela internet. Há em nosso esforço a redescoberta de uma beleza talhada em pedra que talvez nos torne mais fortes. Talvez.

Para minha surpresa, percebo que o tempo que sobra dispersa-se na busca de informação.

Informação, contra-informação, desinformação, especulação, opinião, impressão tudo acaba por se converter numa pasta amorfa que é o avesso do conhecimento porque só reforça a sensação de impotência. E em vez de caridade o que acabo por sentir é medo.

O mais prudente portanto é ficar longe das telas. Longe das telas e mais perto dos livros. Especialmente deste livro que é o Rosário.

Bem alto no céu, as fragatas giram em círculos à espera de correntes favoráveis. Pacientes e prontas, elas são meu exemplo.

Jazz, Amém

… e não haverá um só banqueiro no céu.

Mas haverá uma multidão de músicos de jazz

– mesmo aqueles que se pensavam ateus ou budistas ou sei-lá-o-quê ou sequer pensavam nisso, imersos em suas viagens – de ácido, de heróina, de maconha, de álcool, muito álcool –

todos serão salvos,

porque tocar é já de algum modo desejar a Deus,

e a misericórdia de Deus é imensa – e será imensa para todos os que O desejaram – e só não poupará aqueles que só quiseram dinheiro e poder, e sempre mais e mais…

Não haverá um só banqueiro,

mas o céu estará repleto de anjos pretos reluzindo a luz dourada de seus metais ou o verniz de seus pianos ao lado dos querubins e serafins, numa jam session sem fim como nunca se ouvira antes em toda a eternidade

– e tudo isso de graça, por pura graça, para horror dos banqueiros ardendo de raiva, lá embaixo…

(porque deste mundo nada se leva a não ser a música que se faz com instrumentos, palavras, braços & pernas, sorrisos e tudo mais que rime ou reluza e faça vibrar o ar e suba, suba, suba, se infiltrando por outras esferas, não exatamente visíveis, mas sensíveis aos que têm olhos para crer e coração para amar toda criatura ao alcance de um abraço…)

Corpo&Alma

Eis que de novo me vejo na contingência de ter de acreditar que tenho um corpo, que ele é meu e me foi dado por Deus como algo indistinguível da minha alma e que portanto ele é livre e plástico, submetido ao tempo, às circunstâncias e à minha vontade segundo uma equação que me aconteceu perder, mas que está ao meu alcance recuperar. Eis que de novo me vejo a desafiar a filosofia, a teologia, a doutrina nessas poucas linhas, apenas porque é assim que sinto e não como me dizem ou leio, e prefiro crer no que me falo de mim eu mesmo, essa precária unidade, abalada na origem pelo pecado e, no imemorial cotidiano, pelo erro que dele decorre, essa estranha forma de cegueira que é o ceticismo em suas múltiplas formas que querem todas me separar de Deus e de suas criaturas, e entre elas,eu mesmo, negando-me o presente, porque o presente é o corpo, e negando-me a a eternidade, porque a eternidade é a alma, ao me negar essa unidade, ora querendo fazer do corpo uma prisão descartável de que só a morte me libertará, ora uma bomba-relógio que vai corroendo os instantes até explodir no nada, ora um monstro feito de partes desconexas, ora, ora, ora, tic-tac, tic-tac, tic-tac, tic-tac… Não! Não é assim que eu sinto. E se me engano, que eu me engane sozinho, satisfeito da certeza que me vem, de mim para mim. E se peco, que a misericórdia de Deus me alcance, porque não há malícia nessa minha crença tão discreta e tão necessária neste instante em que o tempo já é escasso, e as dores uma espécie de presságio, a indicar o necessário caminho da economia, que é também uma forma de redenção. Envelheço e nunca me senti tão jovem. Sinto dor e nunca me senti tão uno. Deus deu-me a vinha para ver crescer as uvas de que fará seu sangue. Seu jugo é leve e sua promessa maravilhosa.

A agenda

Para Mônica Reis

Venderam-me uma agenda quando já vai longe o ano. Com suas páginas letárgicas, todas em branco, ela antecipa o tédio, a aceitação e o esquecimento como os alvíssimos elementos que hão de me tecer os dias: idêntico vazio atravessado de humores.

Sim, o leve vazio da vida onde o que pesa são os humores. O tal ego que mal cabe na agenda. Ela vira então um convite a diminuir o ego até que ele coincida com o vazio – vazio dentro do vazio, numa inefável leveza de fazer corar os místicos.

Fiquem eles com sua teologia negativa! Eu adotarei a rígida psicologia negativa que a agenda me impõe: nada além de contas a pagar e outras tarefas inadíveis e impessoais. Todo o resto será o branco silêncio das linhas imaculadas. Nenhum projeto, nenhum desejo: a agenda será meu claustro!

E nas páginas dos dias irremediavelmente passados, habitarão os santinhos, para assim simular a eternidade. Eu tenho os meus prediletos, mas simpatizo com todos. Porque santo de verdade não tem ego: é puro amor.

Nem ego, nem agenda, é verdade. Agenda (e livros em geral) é coisa de aprendiz de santo (ou então é só uma chatice!).

Os dias e as noites

O homem é um bicho muito barulhento. A rolinha que mora na área de serviços já se acostumou comigo, acho eu, mas acompanha com curiosa preocupação a variedade de ruídos que produzo. O abrir e fechar de torneiras, o tilitar de vidros e copos, o tinir atabalhoado das panelas esbarrando em tudo, o rugir do mixer, do moedor de café, do liquidificador, os estalos do fogão e da geladeira, o apitar da chaleira… Ah! E os talheres! Os talheres que sempre soam como um bando de mulheres a se vestir para uma festa!

E há eu-eu-eu-eu-eu-eu-eu – o distraído motor disso tudo que às vezes quebra um copo ou deixa cair alguma coisa, atira outras na pia, fala sozinho, fala no celular, murmura, imita vozes, forja diálogos, cantarola, gesticula, e ainda assim se acha silencioso, discreto e calmo – para espanto das rolinhas e surpresa de ninguém.

Só à noite de fato tudo se acalma e sobre a casa desce um silêncio tão denso que até a noite escurece e então se pode ouvir o íntimo pulsar das coisas. É quando Deus às vezes vem na brisa soprar em suas criaturas a graça de sabermos todos existir assim tão juntos, Nele, por Ele e para Ele, irmãos e irmãs, lua, orquídea, estrela, eu, os vizinhos que lêem ou dormem e sonham e são como eu e tudo mais criaturas vivas, mais vivas até do que costumamos conceber se Dele nos esquecemos…

A aposta de Pascal

Logo saberemos.
É só nossa ansiedade que faz parecer longa a espera.
“Aproveitar a vida” não depende de crenças,
mas do talvez nem tão misterioso gosto
de ser barco ou de ser porto,
de ser livro ou paisagem.
Pouco ou nada escolhemos,
ainda que sejamos livres,
livres até o ponto do desespero.

Logo saberemos.
E quanto mais perto o momento presumido,
mais calmo eu me sinto.
Outros ao contrário parecem atônitos com os efeitos do tempo.
A mim, envelhecer é a novidade nem sempre cômoda de agora.
Não reclamo: quase morri de juventude.
A velhice ao menos me parece mais segura.

Logo, logo saberei.
A esperança na continuidade – que decorre da fé – não me apressa, mas atiça a curiosidade: como será?
E o que me resta de ceticismo contrapõe: e se não houver nada?
Ora, nada saberei.

Minhas memórias, esta modesta biblioteca, o prazer da metafísica e da oração são a metrópole que percorro como um flaneur. Por ora, basta-me. E teria me bastado, se nada houvesse depois.

Às vezes, penso vislumbrar um jardim.
Não tenho pressa. Logo saberei.

As plantas

A plasticidade das plantas me encanta. Fixas, elas tomam formas inesperadas em sua ânsia de sol. Silenciosamente o procuram, com a discrição obstinada dos monges: não as vemos mover-se, mas elas seguem incessantes, como se quisessem evitar o testemunho de nossos olhos, como se quisessem nos mostrar o quanto são também espírito.

Gosto de colocar pedras junto dos vasos e imaginar que as plantas são bailarinas e as pedras escafandristas ou simples homens petrificados de amor. As plantas dançam para as pedras que só para elas têm olhos de ver…

Não sei se me sinto mais pedra ou mais flor. Pode ser que dependa do dia: se há mais sol ou mais vento, se chove, se faz frio. Não sei. Mais certo é que seja os dois alternadamente. Algo me diz que ser homem é já ser um pouco tudo. Não sei. No Genesis, Deus chama Adão pra dar nome às coisas. Dar nome não é criá-las, mas encantá-las.


“Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais dos campos, e todas as aves dos céus, levou-os ao homem, para ver como ele os havia de chamar; e todo o nome que o homem pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome.” Genesis, 2:19

Chove

Ouço o som efervescente da água se estilhaçando no chão e fazendo subir o cheiro mineral das pedras que arrefecem de repente: chove.

Me sinto mais sozinho quando chove. Os animais também. As rolinhas se encolhem no seu ninho, os outros pássaros somem. Acho que todos se sentem mais sozinhos quando chove. Porque é tudo sempre muito brusco e radical: o céu escurece de súbito, a luz cessa até não haver mais sombras e então o mundo se inverte: chove.

Não tenho para quem ligar. Não tenho para quem dizer: “Eu me sinto mais sozinho quando chove”.

A água desce do céu. Fecha-se o ciclo da eternidade sensível às criaturas: as águas subiram e agora descem de volta: “Sempre atravessarás o mesmo rio, Antonio, tu que mal sabes quem és”.

“Talvez sejas o mesmo sempre, como a água que corre incessante. Essencialmente os mesmos, tu, homem, e o rio.”

Imagem móvel da eternidade? É o que dizem que Platão teria dito, mas talvez seja mesmo um erro de tradução, porque não é mera imagem. É real: movemo-nos, eu e o rio, na eternidade. Somos e não somos os mesmos. Em essência, sim, somos. Mas não haverá nada lá no fundo que nos distinga?

É, ao menos, o que me diz a solidão que sinto.

Arrefecem-se as pedras e eu entristeço. Isso é certo. Sinto no ar o cheiro, sinto na alma a sombra. Eis o que posso de fato dizer. Tudo mais é mistério.