Ucrânia

Quando se olha do alto um fluxo de água correndo ladeira abaixo sob a luz do sol, em algum momento a água parecerá inverter a direção e subir em vez de descer. Mais um pouco e ela parecerá subir e descer ao mesmo tempo, ou quase ao mesmo tempo, variando num piscar de olhos, dada a impossibilidade física de se ver o que o espirito intui: que, de fato, a água sobe e desce ao mesmo tempo, não como se fosse um fluxo correndo inexoravelmente de um ponto a outro, mas como uma via por onde é o próprio movimento quem trafega, incessante. Não como um raio, mas como uma ponte. E assim como é com a água, será com a luz, com o tempo, com tudo que pareça correr irremediavelmente para o fim, sem volta, quando, no entanto, sim…

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Quando mergulhamos a folha de papel em branco que fora antes atravessada pela luz filtrada por antigos negativos, as imagens de um passado remoto saltam para os nossos olhos, como se o olhar tivesse esse poder mágico de atualizar as coisas, de fazê-las saltar do nada, instantes congelados em uma foto, em uma falta, a que a memória se encarrega de dar movimento e então quase podemos ouvir os aplausos, sentir o cheiro das roupas suadas, o gosto do suor dos corpos muito próximos, corpos vigorosos que correm, saltam em gestos delicados e magnificos, cheios de leveza e força, tradição de séculos e exuberância de jovens que em sua perfeição não parecem ter idade, como estatuas, como heróis, aos olhos do menino que nunca antes vira de perto algo tão fabuloso…

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Ao contrário do que pretendia Heráclito, sempre estamos no mesmo rio, nunca chegamos a atravessá-lo, porque somos nós o rio onde o tempo vai e vem, incessante e o mesmo…

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Dizem os pesquisadores que memória e imaginação são processados na mesma região do cérebro. De tal modo que um observador, contando apenas com o registro em tempo real de uma tomografia, não pode saber se o paciente lembra ou imagina.

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O artista trafega todo o tempo no limiar entre memória e imaginação. Seu trabalho é misturar memórias suas e alheias e dar a elas sequências e desfechos distintos. A isso chamamos criação. O louco igualmente já não distingue memória e imaginação e a isso chamamos delirio. O limiar entre a arte e a loucura é impreciso.

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Sempre é do tempo que se trata. Tempo que flui e reflui, hipotético ou vivido, já mal se pode distinguir de fato.

Aceitamos a imprecisão porque é da sanidade agarrar-se ao presente, à impressão imediata que nos vem pelos sentidos porque de fato é só isso que temos. Nosso realismo natural é compulsório e inclui sabermos que o presente está submetido ao tempo e passará como tudo mais inexoravelmente a caminho do esquecimento.

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Nós chegamos a pensar que era a luz que atualizava os objetos revelando sua verdadeira essência de coisa finita.

Se é assim, o que a luz nos revela sobre o fluxo é que ele corre incessante em ambos os sentidos simultanemente e que, portanto ele é um pedaço de eternidade, indo e vindo, simultâneo a si mesmo,e nada dele escapa, nada se perde. O tempo é nossa substância: somos feitos de eternidade.

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Quem sabe essa chuva que cai agora seja afinal a mesma água desde o inicio dos tempos e por todos os séculos e séculos…

A mesma água, as mesmas moléculas de hidrogênio e oxigênio subindo e descendo incessantes, correndo do alto das montanhas para o mar e daí para o céu para de novo descer como chuva e alimentar as nascentes e assim desde sempre…

E se assim fôssemos também, pedaços de eternidade que precisam viver sob a ilusão da morte, de uma duração que nos dá, nos oferece, nos obriga ao amor, à urgência do amor e da escolha?

Haveria amor se não houvesse a morte? Se nos soubéssemos eternos, amaríamos?

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O menino corre de mãos dadas com sua mãe. Ela é jovem, forte, e o abraça e enche de beijos. Beijos até na boca! E eles entram e saem do palco para os bastidores, dos bastidores para o palco, correndo, os corpos quentes brilhando de suor e júbilo, e se curvam solenes para agradecer os aplausos que não cessam. Ele é o filho único de um guerreiro cossaco morto em combate, mas dele herdou a espada e o gorro – o que simboliza que a luta continuará. Nunca chegou de fato a saber qual daqueles homens magníficos foi seu pai, mas sua mãe era a única de cabelos negros entre tantas mulheres louríssimas. Em comum, a mesma pele muito, muito branca, branca como nunca vira, sem marcas ou manchas, e a carne dura, delineada e ágil com imaginava seria o corpo dos super-heróis que ele mesmo sonhava ter. Ah! Com aquilo o impressionava! aquela combinação alucinante de beleza e força que não era mediada por língua nenhuma, pois todos falavam o que diziam ser “russo” e se comunicavam com ele por gestos, olhares, sorrisos, mas que eram de uma clareza quase telepática como a que via entre os animais e suas crias. E que contraste com a vida que levava! Sim, ele amava sua mãe verdadeira, mas como queria seguir com aquela outra mãe de fantasia, jovem e forte como uma deusa, e que o beijava na boca. Na boca! O que fazia dele um homem, um homem experiente, o único na sua idade que já beijara na boca. Muitas vezes. Por mulheres diferentes. E todas lindas! Que vida!

Um fogo ardia no palco, flamejante e rubro. Os cossacos dançavam com ele e para ele, embalados por uma música frenética que estimulava saltos e piruetas inverossimeis. Dos bastidores, o menino encanta-se com os homens e com o fogo. Do lugar onde estava, o menino podia ver o fogo como a plateia o via, mas também podia vê-lo como de fato era: um fogo falso, feito de panos agitados por um ventilador. E isso o encantava ainda mais que se de verdade fosse. Encantava-o crer no que se sabia falso, mas crível. Criam – ele e a platéia de adultos – que era em torno do fogo que cossacos dançavam numa planície perdida da Ucrânia sua dança inverossimil. Não só de pano e vento se fazia o fogo, mas dessa crença tão ardente e eficaz quanto o próprio fogo. Ardia a alma dessa vontade de fé que é o fundamento da arte. E da vida, como a arte, hiperbólica, o demonstra.

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Era também dos bastidores que o menino assistia, enquanto esperava sua vez, aqueles corpos magníficos entrarem e sairem de uma realidade para outra, cossacos bailarinos…

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E havia o cheiro, de suor, de perfumes, de hálitos, das roupas, das pessoas, das coisas, dos lugares, das luzes… Tudo tinha cheiro.

(Parece que de todos os sentidos, o olfato é o único que segue por uma via nervosa própria e é processado em uma parte exclusiva do cérebro. Talvez porque na intrincada selva, fosse pelo cheiro que se podia ver à distância. Talvez construir uma civilização seja erguer um mundo feito para os olhos. Um mundo sem cheiros, feito para os olhos. Monumentos, esculturas, quadros, paisagens domesticadas em ordem e simetria. Até a suprema criação feita para os olhos: a escrita – inventora da solidão e da alma. O livro é o espelho da alma.)

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